2007/04/03

Verão Quente (1)

Era Verão e estava quente. Movíamo-nos moles pela casa, espreguiçando-nos pelas divisões como se fossemos gatos, ursos pardos, outros animais indolentes. O meu pai enfiado no escritório relia os jornais da manhã. Ocupava o tempo inteirando-se do mundo, catástrofes, guerras, roubos, discursos, sem perceber que o mundo nunca se inteirava dele. Duas ventoinhas furiosas, expeliam um ar cheio de pó para cima do tampo da secretária que ele mantinha, e continua a manter, meticulosamente arrumada. As duas mães dormitavam nos sofás puídos, de ramagens largas. Sonhavam o mesmo sonho. Um médico de bata branca, sorrindo por cima de um corpo aberto, dizia “Senhora enfermeira, passe-me um espéculo, por favor”. Eu e a minha irmã, ainda meninas, esparramadas nas camas que chiavam como ratos, líamos livros da Enid Blyton. O meu irmão Roberto ausente. Ou por ali, em qualquer sítio, a espreitar revistas do Mandrake, do Fantasma ou do Super-Homem. Ou então enfiado no quarto dele, com a porta fechada, baboso, o pénis erecto, a devorar revistas de banda desenhada erótica. Ele, com astúcia, sempre tentou esconder tais revistas nos esconderijos mais secretos do apartamento. Por baixo da mesa-de-cabeceira. Entre os livros de química e física que ninguém espreitava. Porém, eu descobria-as sempre. Por isso, como ele, experimentava nas tardes moles de verão vertigens de prazer para depois, logo a seguir, sentir culpa, nojo, estranheza.