Estávamos, pois, naquela calma morna de verão, olhando pelas frestas das persianas a ver se o sol baixava, quando um barulho estridente rompeu pela casa. Um som prolongando como a vibração de um insecto, um besouro ou um grilo. Era a campainha da entrada no prédio. A minha mãe, ensonada, levantou-se. Atendeu o intercomunicador. Ao desligá-lo esboçou um sorriso amarelo. Depois, contrariada, anunciou em voz alta, como que em jeito de aviso, Vem aí o Botelho! O Sr. Botelho é o goês mais bonito que conheço. Tem o cabelo muito fino, totalmente branco, feições perfeitas. Com aquele rosto havia de ter sido prelado de gabarito, núncio, bispo, arcediago. Não o que foi, contabilista. O meu pai, que lhe inveja a delicadeza dos traços, volta e meia, a brincar, como quem não quer ofender, tira-lhe com a casta à cara. A casta é uma coisa estranha. Não se apaga. É pior que um sinal de nascença. Não há maneira de um homem dela se livrar. Só pela morte. Um homem pode mudar de mulher, de identidade, de cor de cabelo, educar-se, enriquecer, viajar, alterar o nariz, implantar próteses mamárias, mudar de sexo até. Só há uma coisa que não pode mudar: a casta. Aquela com que nasceu é aquela com que morrerá. Por isso, até no meu pai, há tantos anos longe da Índia, o apego à estratificação que casta impõe se faz notar. Adiante. A mulher do Sr. Botelho, por sua vez, é uma réplica nortenha da minha mãe. São iguais. Até fisicamente são parecidas. É das poucas pessoas que ainda me trata por Clarinha. A porteira do prédio da minha mãe também me tratou sempre por Clarinha. Mesmo durante a faculdade, mesmo quando terminei o curso, sempre me tratou assim. Para ela só passei a ser a Ana Clara quando me casei. A D. Fernanda, é esse o nome da porteira da casa dos meus pais, deve ter entendido que o estatuto de mulher casada não se adequava a tal chamamento. É pena. Gosto de diminutivos. Sugerem pequenez, a minha, e uma docilidade que não me pertence.