2007/10/23

He Fengming (DocLisboa)

São três horas de um único plano, ininterrupto. Uma mulher velha conta a história da sua vida e do seu país. Chama-se He Fengming. Acusada de direitista na China de Mao, viu a vida destruída até ao tutano pelo regime comunista. Foi reabilitada apenas em 1979. Não é um documentário fácil de se ver. Há momentos em que nos apetece desistir. Não há folguedos nem alegria. É preciso abstrairmo-nos das imagens e procurar o frenesim nas palavras. O grande auditório da culturgest estava quase vazio, muitos desistiram a meio, quando He Fengming se calou restava meia dúzia de espectadores na sala. Ao meu lado, um homem aguentou, estóico, até ao fim. Durante três horas mexeu-se na cadeira, procurando uma posição que lhe aliviasse o aborrecimento. Deu gargalhadinhas inusitadas como que a querer mostrar que não estava a dormir, não senhor, nem pensar, estava ali, atento, condoído com a miséria dos outros povos. Bastava olhar-lhe para as horrorosas sandálias, para o cabelo desleixado, para a malinha a tiracolo, sentir-lhe o bafo etilicamente morno quando soltava as gargalhadinhas de bruxa, para perceber que é dos tais que acha que todo o mal do mundo tem origem dos Estados Unidos. Suponho que, com tais gargalhadas, quisesse mostrar que, apesar de esquerdista, também ele possuía lucidez democrática para criticar os horrores do regime chinês. Insuportável. À saída, tive de escoar a minha arrelia. Pisei-lhe os metatarsos. Ele urrou de dor. Pedi desculpa e lancei-lhe um encantador sorriso amarelo. Sou muito boa na arte de sorrir amareladamente. Sai furibunda com o mundo. Sobretudo, comigo. Sem paciência para frioleiras culturais. Acontece-me muitas vezes.