Fui comprar gladíolos e cravos vermelhos às floristas do cemitério dos Olivais. Vendem-nas mais baratas do que as floristas dos centros comerciais. Como se os mortos merecessem um desconto. Lembrei-me das flores que as mulheres, agachadas sobre os cestos de vime, vendem à entrada dos templos hindus e das outras flores que se vendem nos mercados, nas praças, no caminho que vai de Margão para Loutolim. Eu, a entrançar o cabelo, a enchê-lo de flores, cravos amarelos, hibiscos, a olhar-me no espelho do quarto, a achar-me por breves instantes bonita, assim escura, feita de sol, sabendo a sal, a angústia e a tristeza cativas nos nós das minhas veias, eu, a sair para o quintal com uma flor de lótus presa no elástico, a ouvir as gralhas lá no alto, falando entre si, sem perceber que escarneciam da minha vaidade.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2007/04/30
Pensão Imperial
A noite faz-se em chuva e escuridão. Vicente adormece no seu quarto segurando um pau de giz. Ascensão apaga as luzes da Pensão Imperial. Antes de se deitar, verifica se Alzira foi à casa de banho. Confere se o resguardo está colocado na sua cama. Está cansada dos lençóis molhados pela manhã, do cheiro adocicado que se espalha pelo quarto, esse cheiro intenso, excessivo, que a repele enjoa. A velha dorme de boca aberta com um barretinho de lã cor-de-rosa enfiado na cabeça. Em cima da mesa-de-cabeceira, a dentadura repousa dentro de um copo mal lavado, muito riscado e baço. Ascensão observa o quarto. O soalho de madeira apodrecida adormece os seus passos. O tecto, trabalhado em estuque, tem florões onde repousam insectos mortos. Em cima da cómoda, uma rapsódia de inutilidades: frascos de perfume vazios, estatuetas quebradas, caixas de pó de arroz, leques, um aparelho para retorcer as pestanas, outras bugigangas compradas nas lojas chinesas da praça.
Ascensão olha para Alzira que ressona baixinho. Não lhe pesa a traição do marido com aquela prima distante, mais velha, de rosto empoeirado e frases levemente ordinárias. A traição do marido trouxe-lhe até uma sensação de conforto que nunca pode confessar a ninguém. Não se importa que o marido, tantos anos atrás, a tivesse trazido para morar na Pensão Imperial. Os hóspedes passaram a sussurrar segredos, estranhando o seu silêncio e a sua compreensão. Apenas uma vez, lembrava-se agora, um vendedor, que se hospedou por um mês na Pensão Imperial, quis dizer-lhe qualquer coisa, vira-os na copa, ela deitada sobre o tampo de mármore, arfando como uma cadela com o cio, ele por cima dela, arfando também, mexendo-lhe no com desembaraço e intimidade, percorrendo-lhe todos os caminhos do corpo. Ascensão escutou o vendedor em silêncio, concentrando-se nas gotas de suor que escorriam dos seus poros. Depois, levantando-se com aborrecimento, perguntou-lhe se precisava de toalhas lavadas. Quando o vendedor voltou para a sua cidade levou consigo a sua história. Morto o marido, a prima Alzira continuou a morar na Pensão Imperial, sem nada pagar, reclamando de si as pequenas atenções que exigia do morto. Um copo de leite morno ao deitar. Um gladíolo vermelho na jarra amarela. A sua roupa lavada com sabão azul e branco. Os banhos prolongados ocupando, durante longos minutos, a casa de banho do primeiro andar. Mas nada disto incomodava Ascensão. Na verdade, tantos anos passados, só lhe custava uma coisa: o cheiro do mijo, tão doce e morno, que o corpo de Alzira libertava.
2007/04/29
Cravo
Corpo de linho
lábios de mosto
meu corpo lindo
meu fogo posto.
Eira de milho
luar de Agosto
quem faz um filho
fá-lo por gosto.
É milho-rei
milho vermelho
cravo de carne
bago de amor
filho de um rei
que sendo velho
volta a nascer
quando há calor.
Ary dos Santos
(Nunca me despeço de Abril.)
lábios de mosto
meu corpo lindo
meu fogo posto.
Eira de milho
luar de Agosto
quem faz um filho
fá-lo por gosto.
É milho-rei
milho vermelho
cravo de carne
bago de amor
filho de um rei
que sendo velho
volta a nascer
quando há calor.
Ary dos Santos
(Nunca me despeço de Abril.)
2007/04/28
2007/04/27
Rafaela
Ai Rafaela, Rafaela, tivesse eu à mão uma pistola e não mais falarias ao telefone com a tua sogra, coscuvilhando a vida da Rosa Maria, a tua cunhada que é casada com um brasileiro chamado Dorival e fez uma peregrinação a Fátima. Deu vinte voltas à capelinha das aparições. Ficou, pobre, com os joelhos feitos numa pasta ensanguentada. Tu, tão despeitada, a dizeres à tua sogra que só não cumpres as tuas promessas por causa da hérnia que te estrangula as vértebras. A rosnares à tua sogra que vinte voltas não é nada, que crente que se preze há-de dar pelo menos cinquenta voltas à capelinha onde os pastorinhos viram dançar o sol e falaram com uma senhora vestida de branco que tinha, em seu redor, um halo de santidade. Ámen. Rafaela, Rafaela, tivesse eu à mão uma bomba e não mais soltarias a tua boçal gargalhada que me eriça a pele e me faz arquear a coluna como um gato assanhado. Estoirava-te a mioleira e o resto. Bocadinhos de ti por todo o lado. A tua banda gástrica perdida entre processos e pastas. Eu sei. Era um favor que te fazia. Livrava-te de ti própria. Só era aborrecido para as senhoras da limpeza que chegam vestidas de cansaço, vindas de outros prédios, de outros escritórios, de outras secretárias. Iam ter um trabalho dos diabos para recolher todos os teus pedaços. É que continuas mastodôntica. Mesmo depois da banda gástrica.
Superlativo Absoluto Sintético
Entre as várias categorias de palavras existentes, verbos, preposições, advérbios, pronomes, nomes, artigos, sempre gostei da dos adjectivos. Já nas aulas de gramática, dadas pela professora da quarta classe, a Vitorina, me rendia aos encantos deles. Mesmo agora, passados tantos anos, ao escrever, uso e abuso dos adjectivos. Utilizo vários para descrever um determinado local ou uma determinada pessoa. Para enfatizar, acentuar uma ideia.
Para além da sua função específica – caracterizar o substantivo -, o que me fascina nos adjectivos é o facto de terem vários graus. Os comparativos, de superioridade, de igualdade, de inferioridade. Os superlativos, absolutos e relativos. Uma plêiade de graus que conferem à à mesmíssima palavra diferentes significados. Em função do grau utilizado, o adjectivo pode ter sentidos opostos. Porém, o superlativo absoluto sintético é, de longe, o meu grau preferido. Por oposição, acho o superlativo absoluto analítico um grau aborrecido, dependente dos outros, que tem de recorrer aos advérbios – o muito, o bastante, o assaz - para conseguir alcançar seu propósito. O superlativo absoluto sintético, pelo contrário, sozinho, numa única palavra, consegue exprimir aquilo que o superlativo absoluto analítico diz em duas.
Agrada-me, depois, a transformação que o grau superlativo sintético impõe à palavra, ao adjectivo. A palavra inicial torna-se comprida, adquire um corpo esguio, ondulante, interminável. Subitamente, o adjectivo torna-se num comboiozinho de letras, numa palavra-lagarta-centopeia. Ferocíssimo, lindíssimo, felicíssimo, agilíssimo, belíssimo, miserabilíssimo, gordíssimo, magríssimo, longuíssimo, curtíssimo, espertíssimo, agradabilíssimo, antiquíssimo, facílimo, burríssimo. Gosto principalmente daqueles que são diferentes, que não resultam da simples adição do sufixo ao adjectivo inicial. Daqueles que, irreverentes, têm o atrevimento de modificar a forma, a composição inicial da palavra. Como por exemplo, paupérrimo, libérrimo e dulcíssimo. “Dulcíssimo” é das palavras que mais gosto ouvir dizer. Quando a digo devagar, as sílabas bem separadas, bem vincadas, sinto-a derreter na boca como se fosse o algodão doce, enjoativo, tingido de rosa, que comia quando ia à feira popular com os meus pais. Dul-cí-ssi-mo. Tem também o sabor do mel, dos caramelos com pinhões trazidos de Espanha, dos rebuçados peitorais que o meu avô trazia sempre nas algibeiras do casaco, da geleia de marmelo preparada, com azáfama, pela tia Dé nas primeiras tardes de Outono, dos quadrados esboroados de doce de grão vindos de Goa, do xarope de laranja com cerveja preta que a minha mãe fazia quando alguma de nós tinha tosse.
2007/04/26
Operário Futebol Clube (2)
Uma mulher destaca-se do grupo. É uma loira magnífica. Deve ter perto dos sessenta anos. Usa uma camisola vermelha, de mangas de balão, e corsários pretos muito justos que acentuam as curvas generosas do seu corpo. Nos pés, unas sapatos pontiagudos, com saltos de agulha, combinam com o tom rubro da camisola. O cabelo comprido, e loiro, foi ripado ganhar volume. A loira magnífica é um leão velho, de juba hirsuta, que dança no meio do campo do Operário Futebol Clube de Lisboa, ali perto da Graça. Volta e meia, quando menos se espera, alça a perna que fica, por breves instantes, suspensa no ar. Confere, desse modo, à dança rendilhados que os outros pares ignoram. O rapaz em cima da camioneta continua a cantar. Na sua voz desfilam kizombas, funanás, canções do José Malhoa e do Quim Barreiros. Levo o meu irmão para o quadrado verde. Dançamos uma kizomba, tentando imitar os passos das mulheres que dançam sós, longe dos homens que soltam gargalhadas enquanto comem tiras esturricadas de entremeada. Sonhamos ambos com a praia do Biléne, em Moçambique, onde há regatos de água salgada cheios de algas roxas e peixes invisíveis. Os meus olhos, porém, não largam a loira que, querendo aproveitar o resto do feriado, se atraca ao corpo de um rapaz que usa sapatilhas puma e tem o cabelo empastado de gel.
Operário Futebol Clube (1)
No meio do campo do Operário Futebol Clube de Lisboa, um quadrado verde delimita a zona de dança. Um rapaz, em cima de uma camioneta de caixa aberta, toca órgão e canta canções populares. Atrás, no campo que sobeja, grupos de crianças jogam à bola. Os pontapés na gravilha do campo fazem levantar nuvens brancas de pó. Ficam os meninos cobertos de uma poalha muito fina que os empalidece. São poucos, quase nenhuns, os homens que se disponibilizam para dançar. Preferem ficar junto dos grelhadores, enchendo-se de fumo, bebendo cervejas em copos de plástico. Contam anedotas, falam do jogo do próximo fim-de-semana, afagam os bigodes escuros e aconchegam os testículos. As mulheres, habituadas à ausência dos homens, dançam umas com as outras. Velhas, novas, gordas, desdentadas, movimentam-se com passos ensaiados, acompanhando na perfeição o ritmo das canções que o rapaz do órgão lança do cimo da camioneta.
2007/04/24
Submissão
Há uns anos atrás Theo Van Gog realizou uma curta-metragem, a que deu o título adequado de "Submissão". Este pequeno filme falava sobre a opressão feminina na religião islâmica. Theo van Gog foi, como se sabe, morto por denunciar o que se passa com as mulheres islâmicas na Europa. Este homem fez mais pelos direitos das mulheres do que as ruidosas activistas de esquerda que, invocando tais direitos, se preocupam quase exclusivamente com as suas barrigas e com a questão do aborto. Nunca ouvi nenhuma levantar a voz contra a obrigação de uma mulher usar um véu a cobrir-lhe o rosto. Assim como nunca vi nenhuma preocupada com esse ritual macabro que é a excisão do clitóris feminino. Pelo contrário, enleiam-se no politicamente correcto, sendo mesmo capazes de arranjar fundamentos para o injustificável. Todas, ou quase todas, admitem a utilização do véu. Algumas admitem até a excisão do clitóris. Falam em liberdade cultural e liberdade religiosa. Avançam com a antropologia e a etnologia. Esquecem, claro está, que tais práticas põem em causa os direitos fundamentais das mulheres. Calam-se quando se noticia a humilhação diária a que são sujeitas as mulheres nas ruas de Teerão. Obrigar uma mulher a usar um véu é aceitar que pode ser apedrejada em público até à morte por adultério. É dizer que é admissível extrair-lhe o clitóris por lhe ser proibido o prazer sexual. Obrigar uma mulher a usar um véu é negar-lhe a liberdade. Obrigar uma mulher a usar um véu é dizer-lhes que é indigna. É atirar-lhe à cara a sua infinita menoridade. E nestes assuntos não há meio termo. Reclamo para estas mulheres exactamente os mesmos direitos que reclamo para mim. Nem que isso signifique ter de deitar para o caixote do lixo, pela pia abaixo, culturas milenares, séculos de tradições.
Deus
Vou-te amar como Deus. Não, não. Deus não sente prazer, nem movimento progressivo até ao prazer, coitado, é tão infeliz.
Vergílio Ferreira, Em nome da terra.
(É bom saber que Deus é como eu. Fico mais conformada por ter, na angústia e na ausência, uma companhia deste calibre.)
2007/04/23
Picasso (2)
Foi então que a minha cunhada, com umas mamas gigantes, prestes a saltar do decote, uma mamas que fazem plof, plof, cada vez que ela se abana, falou. Mordiscando uma tâmara, disse calmamente: Pois eu não gosto nem do Picasso, nem do Dali. São horraaaaarosos! Atenção: ela não disse que eles eram horrorosos. Disse, isso sim, que eles eram horraaaaarosos, assim mesmo, a prolongar o pobre “a” que nem era para ali chamado. E continuou, muito confiante, como uma vaca imensa, tunisina ou argelina, a ruminar a tâmara. Fervi por dentro. O sonho dela é ter na sala um quadro do Albino Moura, aquele tipo que pinta umas gordas em campos de malmequeres e de papoilas. São daqueles quadros que se escolhem nas lojas de decoração em função do padrão dos cortinados e dos sofás. Olhei-a, tão contente consigo própria por ter desdenhado, de uma assentada, dois dos maiores pintores de sempre. Horraaaaarosos! Lembrei-me, depois, de que, quando era rapariga, na vizinhança, era conhecida pela Bo Derek de Sapadores. Contou-me ela, certa vez, derramando orgulho por todo o lado. Enterneci-me. Nem toda a gente tem a sorte de ser cunhada da Bo Derek de Sapadores. Eu, o máximo que consegui foi, no ciclo preparatório, ser conhecida como a Ana Preta do 2º B. Não tem comparação, reconheço. A verdade é que gosto da minha cunhada. Só me aborrece que opine, com jactância, sobre o que desconhece.
Picasso (1)
Durante o almoço de domingo, já não sei a que propósito, o meu irmão, a quem nunca conheci interesses artísticos, saiu-se a dizer que gostava da pintura do Salvador Dali. Olhei-o com surpresa. E amor, eu, que nem gosto do Dali (gosto daquele quadro do Narciso espreitando-se no lago). O meu pai não tardou. Aproveitou a deixa para dar uma gargalhada apatetada, como é seu costume, escancarar a boca cheia de dentes feios e dizer que também gostava do Dali. Não pela pintura, que não conhecia, nem lhe suscitava qualquer tipo de interesse, mas por o Dali ser um franquista assumido, ao contrário do Picasso, esse comunista nojento. Foi assim que ele disse. E espiou-me pelo canto do olho. Ainda falou do bigode do Dali e da Gala. Fingi que não o ouvi. Respondi-lhe muitas vezes, demasiadas, provocando grandes tumultos familiares por coisa nenhuma. O tempo ensinou-me que as provocações do meu pai são uma forma turbulenta de manifestar o amor que me tem. Eu gosto que ele me ame assim, com fúria e uma pontinha de admiração, que nunca admite e mascara de desprezo.
Osvaldo
A leitura do último romance da Lídia Jorge fez-me retomar uma coisa que gosto de fazer: correr. Corro pelo crepúsculo, na companhia de Osvaldo Campos. Mas não observo paquetes (não os há no meu pedaço de rio). Observo brasileiras que, de sandálias de cunha e saias muito curtas, ensaiam passos de dança sob o olhar atento de homens que bebem cervejas mornas encostados ao muro.
2007/04/22
2007/04/20
CDS-PP
Na universidade tive uma colega que se chamava Vanda Silvério. Pequena e magra, movia-se pela faculdade sem a gente dar por ela. Transparente como um pingo de chuva. Como se não existisse. No último ano fiquei a saber que era uma proeminente dirigente da juventude centrista. Uma promessa no mundo da direita conservadora. Olhei-a com espanto. Na altura, a licenciatura quase terminada, prescindira das calças de ganga. Usava agora saias curtas que deixavam a descoberto umas pernas que não prometiam nada de bom. Olhava-se para aquelas pernas e percebia-se que, mais acima, devia haver uma vagina precocemente envelhecida, com musgos e líquenes, mirrada como uma ostra pingada de limão. Para além de se revelarem uma montra pouco apelativa, as saias, azuis ou verde bandeira, combinavam mal com os seus tristes e descambados sapatos de vela. Recordo que, ao vê-la, por instantes, por breves instantes, senti uma enorme pena da juventude centrista. (Não sei por que me lembro hoje da Vanda Silvério. Deve ser da chuva e porque o Ribeiro e Castro, de bochechas caídas, tão desamparado, falando aos soluços, preste a rebentar num choro furioso, me dá dó.)
Autópsia
Atiro-me da janela se, daqui a uns anos, o João adolescente quiser fazer parte de uma tuna académica. Não quero um João adolescente vestido de preto, como um corvo, a tocar cavaquinho, a bater pandeireta ou a fazer momices com uma bandeira. Não estou preparada para tamanho desgosto. É sinal de que falhei redondamente na sua educação. Estou descansada enquanto ele continuar a disputar comigo os olhos e os miolos das douradas que comemos à mão, lambuzando-nos como selvagens felizes.
(A Dá não gosta de olhos de peixe. Prefere chupar a espinha, arrancando-lhe, com perícia, a medula, um fiozinho translúcido com sabor a mar. O pai, esse, olha-nos horrorizado, enquanto come os lombos branquinhos com que lhe enchemos o prato.)
(A Dá não gosta de olhos de peixe. Prefere chupar a espinha, arrancando-lhe, com perícia, a medula, um fiozinho translúcido com sabor a mar. O pai, esse, olha-nos horrorizado, enquanto come os lombos branquinhos com que lhe enchemos o prato.)
2007/04/19
Joaquim
Assim, do nada, pela segunda vez, veio-me um enjoo grande. É castigo pela maledicência. Hei-de arder, queira deus, eternamente nas labaredas do inferno. Já tomei um chá e não passa. Na minha cabeça desfilam, num cortejo precipitado, nomes. Helena, Amélia, Rosa, Florinda, Joaquim, Xavier, Gaspar, Raul. Gosto de Florinda, que é o nome da menina-flor do Rapaz de Bronze. Gosto de Joaquim, nome do irmão preferido da minha avó Felicidade, sempre muito bêbado, um cheiro acre a vinho, toda a tristeza do mundo a escorrer-lhe dos olhos pelo rosto encardido e sujo.
Rafaela
A Rafaela, a tal secretária da banda gástrica que me elogia com suspiros as camisolas quaresmais, comprou um apartamento em Armação de Pêra. Não se cala. Em vez de tratar dos requerimentos executivos que repousam em cima da sua secretária passa o tempo a falar das vistas e mordomias da casa comprada na Massamá do Algarve. O Silva, contínuo desdentado, que fala guturalmente e gasta o seu ordenado em playstations para a besta do filho que já chumbou dois anos, ouve-a embevecido. Eu, em vez de trabalhar, fico muito quieta, maravilhada, a ouvir-lhes a conversa. A mulher não se cala. Tem o corpo ensopado de palavras. Eu tenho o corpo ensopado de silêncios.
2007/04/18
Rainha de Copas (2)
Hoje, quando a vi, estava com o marido a falar com uma mulher mais velha, que fazia gestos largos e dava gargalhadas ruidosas. A Carla e o marido, embevecidos, abraçados, entrançados, como se fossem só um corpo, escutavam-na. As mãos gordas e sapudas da Carla a fazerem festas nas costas do marido. Porra. Fiquei logo enjoada com aquilo. Como é possível que, passados tantos anos, ainda façam as mesmas figuras que faziam no liceu? De certeza que ela continua a fazer beicinho e a tratá-lo por "mor" que é a maneira mais – como dizê-lo?- merdosa de se dizer "amor". Como é possível que continuem a comportar-se como se fossem as pessoas mais felizes do mundo? Enervou-me, já me enervava no liceu, tanto amor, tanta compreensão, tanta cumplicidade. Não há pachorra para quem é feliz. Detesto a felicidade dos outros, principalmente a felicidade cor-de-rosa choque, feita de sorrisos babosos, de lugares comuns, de frases feitas, repetidas, previsíveis. Imaginei-os na cama. Ele, muito excitado, com uma pila pequena e fina, muito direita, o cabelo penteadinho, com as cãs já grisalhas, a cavalgar, furioso, como se fosse uma pulga frenética, em cima daquele corpo imenso, branco, paquidérmico, insuportavelmente níveo, cheio de banhas e de celulite. Pior, imaginei a Carla a ter um orgasmo, aquela boca de beiços grandes a gemer, a arfar, os olhos a revirarem-se como espirais e a dizer baixinho "oh...mor...anda... anda…vem...". Estou mal disposta desde então. Com essa terrível imagem. E com a hipótese da rainha de copas, ao contrário da minha álgida pessoa, ter orgasmos de jeito. Grandessíssima puta.
Rainha de Copas (1)
Por baixo das arcadas do edifício onde trabalho, ao longe, reconheço o perfil de uma antiga colega de liceu. Já não me recordo do seu nome. Acho que é Carla. Ela tem cara de Carla. Tem mesmo. Detesto o nome Carla. Se a minha mãe tivesse tido a infeliz ideia de me chamar Carla, eu, assim que completasse 18 anos, mudava de nome. Desculpem-me as poucas Carlas que conheço e também as muitas que não conheço, mas Carla é nome de mulher de 40 anos, com permanente no cabelo, que passeia, aos domingos, nos centros comerciais de mão dada com um marido de bigode, fio de ouro ao pescoço e fato de treino brilhante. A dita colega, a quem chamarei Carla, está com o antigo namorado. Passado tanto tempo, o dito já deve ter subido de estatuto. Agora deve ser cônjuge, marido, de papel passado e aliança no dedo. Devem ter filhos. Dois no máximo. Um Tomás e uma Carolina. Devem viver num apartamento na Bobadela, no Prior Velho u na Quinta da Piedade. A Carla é grande e gorda. Parece uma vaca leiteira. É feia. Tem um ar, como hei-de dizer, bovino-suíno. Tem mesmo. Já o marido é miudinho, pequeno, murcho, mínimo. Parece um anão imbecil ao pé dela. O cabelo muito penteado. Quando os vi lembrei-me imediatamente da insuportável Rainha de Copas e do seu soberano marido, do filme "Alice no País das Maravilhas". Vi este filme centenas de vezes, até à exaustão, quando o João era pequeno. Para além de se parecer fisicamente com a dita personagem, a Carla tinha, e deve continuar a ter, um feitio detestável. Invejosa. Era tão invejosa. Era daquelas estúpidas que tinha inveja das notas dos outros. Podia ter uma nota razoável, um 15 ou 16, mas ficava visivelmente transtornada com o facto de alguém ter melhores notas do que ela, o que, aliás, acontecia quase sempre.
2007/04/17
Eduardo
Ainda agora o Eduardo Prado Coelho voltou às páginas do Público e já eu ando agoniada com o que escreve. Hoje fala da RTP. Insurge-se contra o matinal Praça da Alegria e também contra as entrevistas da Judite de Sousa ao Valentim Loureiro e ao Tony Carreira. Para o Eduardo Prado Coelho a televisão pública havia de nos massacrar apenas com as entrevistas da Ana Sousa Dias ou com documentários sobre o cinema realista italiano. O que ele queria era que a televisão fosse a grande educadora do povo. Era o que mais faltava! Eu, por mim, não deixo que televisão alguma me eduque! Vi a entrevista ao Valentim Loureiro e, para além do evidente interesse jornalístico, foi dos momentos mais divertidos em televisão dos últimos tempos. Já a Praça da Alegria tem como colaborador residente aquele padre que canta a canção do senhor da Galileia. Ele canta e, com o público, participa nas coreografias da palhacinha Picolé, dando graças a deus por estar ali pertinho dos decotes da sonia qualquer coisa. Eu gosto de ver. Quanto à entrevista do Tony Carreira só não a vi porque naturalmente não a apanhei. Não gosto do que o Tony canta, mas encanto-me com o frenesim à sua volta. O Tony Carreira com as suas virolas de cetim, o seu capachinho, a sua trupe de fãs, quase todas mulheres entre os 35 e os 50 anos, o seu filho Micael, é uma personagem incontornável na cultura popular portuguesa. Só um palerma como o Eduardo Prado Coelho, um intelectual que abomina a cultura popular e o povo, não percebe isso.
Guaxinim
No comboio, um homem negro, escuro como breu, um preto retinto como a minha mãe costuma dizer, lê um dicionário de inglês-português. Está vestido de branco dos pés à cabeça. Calças brancas, camisola branca, anorak da adidas branco, sapatilhas branca, boné branco. O branco que o envolve acentua a sua negritude. O homem é a noite e tem, reparo agora, uma cicatriz em forma de estrela no rosto. Ao seu lado, uma mulher grande, de cabelos longos e encaracolados, dorme com a cabeça tombada para trás. Traz os olhos exageradamente pintados de preto e branco e, no pescoço assim esticado, uma linha incerta mostra até onde espalhou uma base cor de argila. Parece um guaxinim adormecido. Um movimento brusco do comboio e a cabeça da mulher guaximim resvala para o ombro do homem negro. Ele levanta os olhos e, por breves segundos, fixa os meus. Quer, parece-me, compartilhar comigo a estranheza daquele corpo de mulher branca encostado em si que é a noite. Depois continua a ler o dicionário da verbo editora.
2007/04/16
Leite
Um homem indiano, no bulício quente da praça, grita num linguajar que lembra inglês: "you won´t fuck her again!". Tem muitos sacos de plástico aos seus pés e fala de uma cabine telefónica. Gesticula com uma mão. Segura com a outra o bocal. "You won´t fuck her again!". O amor transforma-se em cólera. Em raiva. A raiva sai da boca do homem em forma de palavras. A raiva paira sobre a cidade. Espalha-se pela praça como se fosse leite derramado. Ferve. Transforma-se em espuma. Sobe. Transborda. Cobre a placa e os bicos do fogão. “You won´t fuck her again!” O amor transforma-se numa nata pegajosa e amarelada. A raiva do homem indiano perde-se na avenida. Toca os transeuntes amanuenses que saem dos bancos, das companhias de seguros, dos escritórios de advogados, das lojas caras, das repartições públicas, das correctoras. Lá em baixo, na praça, o homem indiano pega nos seus sacos e apanha o autocarro que vai para a Apelação.
2007/04/15
2007/04/13
Varejeira
Já o disse com a certeza que sempre se confere às afirmações insignificantes. A blogosfera é uma coisa medonha. Aborrece-me a maneira como a gente nela se escancara, de perna aberta, tal qual uma puta fácil, de lábios esborratados de baton carmim, partilhando intimidades, esculpindo a imagem que queremos que os outros tenham de nós. Eu, pelo menos, minto descaradamente, com os dentes todos, que é para me imaginarem interessante, escarnecer dos outros e sentir-me, insana que sou e me quero, diferente. Aborrece-me, sobretudo, a democraticidade da coisa. Qualquer intelectual de meia tigela armado ao pingarelho tem um blog. Qualquer pretenso comentador político escalpeliza, numa diarreia de textos ilegíveis, factos, histórias, notícias. Qualquer rocinante, que zurra aos quatro ventos a sua equídea natureza, largando cagalhões gigantes cor de palha, tem um blog. Qualquer miúda fantástica da Reboleira, daquelas que usam óculos escuros gigantes e, por isso, se assemelham a moscas de olhos metalizados, tem um blog. Enfim, qualquer bardamerda tem um blog. Coisa triste, escrever num blog.
(Hoje, confesso, estou especialmente bem disposta. Há sol. Eu sou do sul. Alimento-me de luz e de sol.)
(Hoje, confesso, estou especialmente bem disposta. Há sol. Eu sou do sul. Alimento-me de luz e de sol.)
2007/04/12
Roedores
No refeitório, enquanto deslizo na cadeira, observo as bocas dos que comem. Há bocas que se abrem ao mastigar, mostrando caninos e incisivos furiosos que transformam em papa os alimentos. Outras bocas mal se mexem. São bocas rijas que interiorizaram os ditames da boa educação. Não se leva a boca ao prato, não se mastiga com a boca aberta, não se apoiam os cotovelos na mesa. Ao meu lado um homem sozinho sorri para o prato gigante de tomate, beterraba cozida e juliana de cenoura que trouxe do bufet das saladas. A gratuitidade das saladas do refeitório alegra-o. Ao final do dia, quando a mulher lhe perguntar o que almoçou, dirá que comeu feijoada de chocos e um grande prato de salada. Alertará, como todos os dias, para o facto da salada - milho, alface, tomate, rabanetes, couve roxa, couve lombarda, pepino, cebola, pimento, cenoura, tudo o que tu possas imaginar filha !- ser de graça. O homem começa a comer. A sua boca mastiga a salada com movimentos energéticos de pura satisfação. É então que vejo passar a Mafalda com a sua nova namorada. Não é nada gira. Já desconfiava pelas palavras da M. Tem corpo e feições de porquinho da Índia. Já estou a vê-la a correr por uma pradaria, enfiando-se em tocas, alarmada com o voo planado das águias e dos falcões. Consta, porém, que é muito boa rapariga. Isso é que importante. O que eu gostava de ser uma boa rapariga.
Náusea
Há quem diga, há quem assegure que o governo cai hoje – imagine-se!- por causa do inglês técnico e que, não tarda nada, o Paulo Pedroso vai voltar a este país para ser presidente de uma fundação qualquer. Tenho vontade de vomitar. Sou uma rapariga muito dada a enjoos e náuseas.
Baratas
Sonhei com baratas num apartamento. A sujidade cor de ferrugem acumulava-se pelos cantos. As paredes do apartamento estavam cobertas de papel amarelecido onde rosas cor de chá choravam as memórias de dias antigos. As janelas tinham portadas de madeira nacarada. Lá fora, gruas e contentores de várias cores acenavam com destinos longínquos e promessas de felicidade. Quis assomar-me à janela. Para respirar fundo e fugir da caliça suja daquela casa. Porém, no parapeito, nos caixilhos amarelos, várias baratas comiam por mim a bruma leitosa que pairava sobre o porto.
2007/04/11
Barão Trepador
Desato-lhe os cordões das botas. Tiro-lhe as meias. Estão transpiradas. Pego-lhe nos pés. São já do tamanho dos meus. Cheiro-lhos. Como se ele fosse um cristo ignoto e eu uma virgem mãe. Beijo-lhe o sinal que tem no dedo mais pequenino do pé esquerdo. Digo Gosto tanto do cheiro dos teus pés. Ele não responde. Limita-se a sorrir, mostrando os dentes novos, definitivos, enormes, que lhe estão a crescer na boca. Pergunto Achas que sou maluquinha por gostar do cheiro dos teus pés? Ele volta a sorrir. Atira-se para trás. Suspira. Depois responde. Um pouco. Acho que és uma mãe um pouco louca. São estas as exactas palavras que lhe saem da boca. Volto a pegar-lhe nos pés. Esfrego-os no meu rosto. Às vezes, muitas vezes, tenho a sensação de o sufocar com os meus gestos. Não sou capaz de não lhe tocar. Tantas vezes que desejo ter um ventre enorme elástico onde ele novamente se aninhe e sossegue. Tenho por ele, mais do que por ela, um amor táctil, quase obsceno.Chegará um dia em que ele não me deixará cheirar-lhe os pés, nem me contará os sonhos, nem me pedirá ajuda para colar cromos na caderneta. Estranhará a minha nudez, esconder-me-á a sua. Abrirá assim fissuras irreparáveis na nossa intimidade. Deixarei de me reconhecer no seu corpo, nos olhos, na boca, nas mãos, na sua pele de maltês e andarilho, escura como a de um cigano. O seu corpo deixará de ser o meu corpo. (Acho indecente que os filhos cresçam.)
2007/04/10
2007/04/09
Verão Quente (2)
Estávamos, pois, naquela calma morna de verão, olhando pelas frestas das persianas a ver se o sol baixava, quando um barulho estridente rompeu pela casa. Um som prolongando como a vibração de um insecto, um besouro ou um grilo. Era a campainha da entrada no prédio. A minha mãe, ensonada, levantou-se. Atendeu o intercomunicador. Ao desligá-lo esboçou um sorriso amarelo. Depois, contrariada, anunciou em voz alta, como que em jeito de aviso, Vem aí o Botelho! O Sr. Botelho é o goês mais bonito que conheço. Tem o cabelo muito fino, totalmente branco, feições perfeitas. Com aquele rosto havia de ter sido prelado de gabarito, núncio, bispo, arcediago. Não o que foi, contabilista. O meu pai, que lhe inveja a delicadeza dos traços, volta e meia, a brincar, como quem não quer ofender, tira-lhe com a casta à cara. A casta é uma coisa estranha. Não se apaga. É pior que um sinal de nascença. Não há maneira de um homem dela se livrar. Só pela morte. Um homem pode mudar de mulher, de identidade, de cor de cabelo, educar-se, enriquecer, viajar, alterar o nariz, implantar próteses mamárias, mudar de sexo até. Só há uma coisa que não pode mudar: a casta. Aquela com que nasceu é aquela com que morrerá. Por isso, até no meu pai, há tantos anos longe da Índia, o apego à estratificação que casta impõe se faz notar. Adiante. A mulher do Sr. Botelho, por sua vez, é uma réplica nortenha da minha mãe. São iguais. Até fisicamente são parecidas. É das poucas pessoas que ainda me trata por Clarinha. A porteira do prédio da minha mãe também me tratou sempre por Clarinha. Mesmo durante a faculdade, mesmo quando terminei o curso, sempre me tratou assim. Para ela só passei a ser a Ana Clara quando me casei. A D. Fernanda, é esse o nome da porteira da casa dos meus pais, deve ter entendido que o estatuto de mulher casada não se adequava a tal chamamento. É pena. Gosto de diminutivos. Sugerem pequenez, a minha, e uma docilidade que não me pertence.
Vicks
Irrita o bem que me conheço. Mais cedo que tarde a minha faceta de berloques serial killer virá ao de cima. Com excepção do primeiro, aniquilo-os, com espalhafato e frenesim, antes que completem um ano. Matar palavras, como quem esmaga uma beata ou um carreiro de formigas gordas, é forma de mutilação. Expiação, também. Alivia. Descongestiona. Como a cânfora e o óleo de agulhas de pinheiro.
Lembrete
Tópicos: progenitor suicida, mira nair, abacates, santanete, sonhos de cego, cabrito morto, cravos túnicos, excrescências, danados (ou de como a gente se pode assim apaixonar pelas palavras de um homem, querendo-me, asseguro-te, sou tua, até fecho os olhos ao anel brasonado que usas no mindinho.)
Opilca
Manhã cedo, na aula de ginástica, ao levantar os braços durante o aquecimento, reparei que o Adelino, único homem da sala, muito simpático, cheio de meneios e galanteios, a fazer lembrar uma crisálida gigante, tem menos pêlos nos sovacos do que eu. Aliás, em rigor, não tem nenhum. Tirou-os com opilca. Quase de certeza. A minha auto estima, tão arredia nestes dias, olhou-me horrorizada. Encolhi-me. No final da aula, ao ver-me afogueada, o rímel derretido escorrendo o rosto, os poros dilatados, os pêlos a espreitar dos sovacos, as varizes marmoreando a minha perna direita, inchadas de azul, recusou-se uma vez mais a acompanhar-me. Ficou no ginásio a arremelgar os olhos para o Adelino, a borboleta impecavelmente depilada do ginásio. Não voltou ainda. Sumiu-se. Não sei para onde foi.
2007/04/04
Roda Viva
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá.
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda peão
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração.~
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira pra lá.
Chico Buarque
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá.
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda peão
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração.~
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira pra lá.
Chico Buarque
Cream Kiss
À saída da pastelaria Cream Kiss, fiquei com o salto preso na grelha de uma sarjeta. Larguei um “foda-se, caralho” e entrei novamente para pedir ajuda à D. Clara, que tem um filho chamado Fábio André e vende bolas de berlim a pingar gordura às velhas da avenida. Experiente, a D. Clara libertou o salto, enquanto ofendia a edilidade, acusando-a de incompetente e corrupta. Anui e agradeci-lhe o resgate do meu sapato italiano. Ela voltou satisfeita para dentro e, sem lavar as mãos, continuou a aviar as suas freguesas, servindo-lhes galões em copos estalados e croisants maçudos que deixam na boca uma sensação fugaz de conforto. Corri para a estação. A minha auto estima, essa, não quis acompanhar-me. Ficou a escutar as conversas das velhas de Moscavide. Falam dos netos, das noras, das compras nas lojas chinesas, das filas no centro de saúde, da artrite, do preço da pescada na praça, do programa matinal que o Jorge Gabriel apresenta na companhia daquela rapariga loira, muito bonita, que escancara a boca e o decote.
2007/04/03
Verão Quente (1)
Era Verão e estava quente. Movíamo-nos moles pela casa, espreguiçando-nos pelas divisões como se fossemos gatos, ursos pardos, outros animais indolentes. O meu pai enfiado no escritório relia os jornais da manhã. Ocupava o tempo inteirando-se do mundo, catástrofes, guerras, roubos, discursos, sem perceber que o mundo nunca se inteirava dele. Duas ventoinhas furiosas, expeliam um ar cheio de pó para cima do tampo da secretária que ele mantinha, e continua a manter, meticulosamente arrumada. As duas mães dormitavam nos sofás puídos, de ramagens largas. Sonhavam o mesmo sonho. Um médico de bata branca, sorrindo por cima de um corpo aberto, dizia “Senhora enfermeira, passe-me um espéculo, por favor”. Eu e a minha irmã, ainda meninas, esparramadas nas camas que chiavam como ratos, líamos livros da Enid Blyton. O meu irmão Roberto ausente. Ou por ali, em qualquer sítio, a espreitar revistas do Mandrake, do Fantasma ou do Super-Homem. Ou então enfiado no quarto dele, com a porta fechada, baboso, o pénis erecto, a devorar revistas de banda desenhada erótica. Ele, com astúcia, sempre tentou esconder tais revistas nos esconderijos mais secretos do apartamento. Por baixo da mesa-de-cabeceira. Entre os livros de química e física que ninguém espreitava. Porém, eu descobria-as sempre. Por isso, como ele, experimentava nas tardes moles de verão vertigens de prazer para depois, logo a seguir, sentir culpa, nojo, estranheza.
2007/04/02
Poudre Prodigieux
A fêmea de caimão emergiu das águas. Percorreu o areal estreito da margem, embrenhou-se nas raízes aéreas do mangue. Andou durante muito tempo. Por fim, alcançou a cidade. Entrou numa perfumaria onde uma mulher de lábios finos escolhia um baton. Ao vê-la tão feroz, arreganhando uma boca cheia de dentes afiados, a mulher gritou com uma voz feita de estilhaços e caiu desmaiada. A fêmea de caimão sorriu enquanto contornava o corpo desmaiado. Pediu um blush. Experimentou na sua pele áspera, rugosa como um tronco velho, poalhas de mil cores. Mate. Brilhante. Bronzeado. Acabou por escolher um poudre eclat prodigieux que aplicou com um pincel de pelos macios. A fêmea de caimão saiu da perfumaria. O corpo verde. O rosto levemente rosado. Procurou sorrir à empregada que a ajudara. Parecia tremer. Da sua boca feia de mil dentes saiu um bafo quente e vermelho, um cheiro de talho, de carne retalhada. No seu passo lento deixou a cidade. Olhou a caliça suja dos prédios antigos. Olhou as pinturas rupestres, de sprays coloridos, que cobriam muros, paredes, carruagens de comboio também. Aliviada, a fêmea de caimão entrou novamente no mangue. Procurou um lugar confortável ao sol e adormeceu.
Caimão
Tanta competência no mundo. Tão pouca em mim. A secretária, de uma diligência absurda, não se cansa de falar ao telefone com tribunais, advogados, utentes. Às vezes, confesso, gostava que o seu coração parasse. Tantas ameaças, tantas operações e nada. Só para a assustar. É cedo e já estou cansada. Volto a sentir-me uma fêmea de caimão. Saio daqui vagarosamente. Arrasto o meu corpo baço e áspero. As minhas patas movimentam-se num langor pesado. A lentidão toma conta de mim. Os meus olhos quietos, raiados de amarelo, parecem berlindes de criança. Só a cauda quebra o silêncio. Bate na água, com movimentos circulares, quando mergulho num rio de águas turvas.
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