Fiquei ensimesmada,
a pensar como se conjuga o contorcionismo com o prestamismo, sul-americanices, concluí,
coisa de povos que ainda não evoluíram o bastante para chegar ao patamar da
seriedade, do rigor, das contas certas, do défice controlado, tamanha liberdade
e imaginação já não se usa por cá. Apaixonei-me mal a vi, continuava o meu
amigo, vamos casar pela igreja, arranjar empregos, poupar para alugar um T1 e comprar
dois passes sociais. Foi então que a sua Moranguita largou a fugir entre os
carros, preciso dar às pernas, gritava num espanhol açucarado que me encantou, fonética
cheia de modismos, quase parecia italiano, os trópicos nas línguas mãe dão-lhe outro
sainete, um travo de rebelião de dígrafos e fonemas, até parece que as letras são
gente. Porém, quando a vi em correria descontrolada, feliz por recuperar a
marcha, começou a palpitar-me o coração, tal e qual como quando vou de passeio
com o meu filho mais pequeno e o patife me larga a mão ao atravessar à rua. Temi
que se perdesse ou, pior, tão pequenita, algum condutor, a bagageira cheia de
malas, a pressa de chegar a casa, em manobra de arrecuo, a não visse e a
atropelasse. A tragédia que seria. O meu amigo, percebendo a minha inquietação,
sossegou-me, não te preocupes Ana Clara, a Moranguita está muito habituada,
vivia numa urbe furiosa, cheia de chevrolets e cryslers, apesar de pequena, é
mulher que nunca passa despercebida. Mudou de assunto com rapidez, nem imaginas
a quantidade de pretendentes que tinha por lá, quando a conheci, andava a ser
cortejada, mas à séria, com flores, mails dengosos e caixas de bombons recheados
com creme de marula, por um protésico que ganhava rios de dinheiro a fazer
dentaduras caninas; havia também o padre da sua paróquia, rapaz novo, empenhado
na conversão dos infiéis, muito pior do que o protésico dentário, nunca me
enganou, eu bem via como se animava quando levava a minha Moranguita para a
confissão. Andava a tentar convencê-la a ir na procissão da Nossa Senhora del
Bueno Parto, em cima de um estrado de tabuinhas, a fazer as vezes da santa, dizia
que seria um quadro vivo da virgem santíssima, coisa nunca vista, havia de
comover multidões, trazer a paz aos corações malsãos; tudo sem grande dispêndio,
já que era exactamente do tamanho da imagem que estava no altar da igreja,
servia-lhe a túnica branca, com cercadura dourada e também o véu que parecia feito de
encomenda, não precisava de nenhum arranjo, por outro lado, não pesava mais do
que a imagem feita em marfinite, podia usar-se o mesmo estrado de tabuinhas. O
padre ainda lhe ofereceu uma caixa de bombons com recheio de creme de avelã.
Ela não aceitou, para já, por gostar muito mais de bombons recheados com creme
de marula, depois, porque lhe expliquei que não autorizava tamanho disparate, era
o que mais faltava a minha Moranguita vestida de santa, a tarde inteira sob o
sol abrasador, passeando por calles apinhadas de gente, mãos de velhas más, de bêbados,
de tarados recalcados, de mães de família e de empregados bancários, a quererem
tocar-lhe o manto para se livrarem da degenerescência e do pecado.