O regresso do
meu amigo animou-me. Costumávamos dar belas passeatas ali pela Almirante Reis, encontrávamo-nos
pelo meio-dia na esquina do Banco de Portugal, descíamos a avenida até ao
Martim Moniz, comíamos qualquer coisa ao balcão, era, quase sempre, um prego e
um copo de vinho verde no quiosque do chinês vesgo, depois, subíamos de novo
até ao Intendente à cata de prostitutas, heroinómanos, chulos, alcoólicos,
velhas de pele curtida; olhava-os como se fossem objectos preciosos, raridades
de feira, tirava notas numa agenda, o meu amigo ria-se do meu entusiasmo, mas
não o estranhava, percebia que por ali passava a minha emancipação. No final,
acabávamos a tarde na Pensão S. Miguel, no quarto 27, tinha uma cama estreita,
que nos chegava; num varandim enferrujado, duas floreiras com petúnias floridas
disfarçavam o cheiro de mijo antigo que chegava da rua. Ele, a meio da
entretenga, às vezes, dizia gostar de mim sobretudo por eu precisar da miséria
dos outros para viver. Toda a gente tem válvulas de escape para aguentar a
vida, mas a tua é de uma sofreguidão e tristeza que me comove. Deixava-o fazer
análises, que fingisse à vontade ser discípulo de Freud se isso lhe enchia o
ego, mas, sempre que se alongava na merdice psicanalítica, pedia-lhe que se
calasse e para, com empenho, continuar a desempenhar o seu papel de cobridor. Eram
umas tardes deliciosas, assim confortada, custava-me menos regressar ao meu
bairro de empregadas brasileiras passeando pela tardinha meninas loiras de
sobretudo azul, porsches cayenne rodando em avenidas floridas, como mamutes,
gente saindo da mercearia gourmet com sacos cheios de iogurtes biológicos, massas
frescas com tinta de choco, abacates, anonas e tomatinhos cereja.
Fiquei, pois,
muito animada. Com sorte, voltaria a ter tardes de decadência e indecência para
me consolar. Depois, há qualquer coisa no meu amigo anão que me atrai. Quando descemos
a avenida de mãos dadas toda a gente nos olha: eu, razoavelmente portentosa - digo-o,
sem exagero, por ser a mais pura das verdades -, rabo redondinho, cabelo muito
preto, ondulando pelas costas, lábios vermelhos a desabrochar, olhos líquidos de
fêmea infeliz; ele, pequenote, arqueado, hedionda cabeçorra, já meio careca, dentes
tortos numa boca que saliva excessivamente. Devem achar que formamos um par insólito
e estranho. O certo é que roubamos o protagonismo das putas retintas, dos
bêbados, dos sem-abrigo que costumam parar à porta do talho do Karim que, jóia
de rapaz, ao fim da tarde, faz panelonas de borrego guisado para matar a fome a
quem a tem e ganhar o apreço de Alá. Roubar o protagonismo aos indigentes é sempre
bom. Enche-me de vaidade e orgulho.
O meu amigo chegou
no dia 1 de Maio. Passei uma hora em frente do espelho a escolher a indumentária
certa, coisa simples, sem grandes arrebiques de sofisticação, mas que lhe
acicatasse o desejo, entumecesse à primeira vista o mais que tudo e o fizesse
esquecer o cansaço da viagem. Escolhi um vestido preto, justo, decotado, botas
de cano alto. Pedi à minha irmã para cuidar dos miúdos. É que vou buscar o meu
enanito ao aeroporto, expliquei. Ela aceitou prontamente, que não me
preocupasse, ficaria com eles o tempo que fosse preciso, se precisares da noite
para matar as saudades eu cá me arranjo, encomendo uma piza familiar, uma
garrafa de dois litros de coca-cola e meto-os a ver filmes de enfiada. Agradeci-lhe.
É uma irmã como não há outra, a minha única amiga, faz muita questão que, no
meio da maternidade sufocante, arranje tempo para continuar a ser mulher.
Quando cheguei ao aeroporto, estranhei um grupo de hare krishnas que para ali estava
em cânticos mântricos. Esperei quase uma hora. Sentei-me num banco
desconfortável e entretive-me a ver as carecas dos seguidores do guru indiano, tufos
solitários de cabelos claros, dotis e kurtas cor de açafrão, dançavam e
cantavam com a inépcia própria dos ocidentais tresmalhados. Senti fome, pedi
uma empada de galinha e um sumol de laranja num café vazio. Enquanto comia
lembrei-me das tardes na Pensão S. Miguel, ali ao lado do talho do Karim. O meu
amigo anão, para além de sobredotado nas partes baixas, arrepio-me só de
pensar, é um mineteiro muitíssimo experiente, sabe dar à língua, o que não é nada
fácil de encontrar. Há homens que a entesam, um horror, fica aquele pedúnculo arroxeado,
hirto e triangular, uma pichotinha de gato a fazer parelha com a outra, lambem-nos
como se fôssemos um calipo de limão. Não se lambe uma vulva, não se percorrem
os pequenos e grandes lábios, como se a língua, em vez de o ser, fosse um
cajado de dureza hercúlea. O meu amigo anão nunca tentara metamorfosear sua língua,
a sua mantinha a languidez própria e esperada de um músculo que não conhece a
fadiga, a leveza do toque, sabia o que fazia e acertava sempre em cheio, nunca
precisei de lhe agarrar na cabeça para lhe corrigir a pontaria. Enquanto ele cunilinguiava
eu suspirava baixinho, mal se notava o meu prazer; na verdade, nunca fui mulher
de exagerar, com urros, gritos e rolar de olhos, os meus folguedos. Atingia o
orgasmo com intensidade, mas, ainda assim, nunca me libertava da envolvência. Pela
janela aberta chegava o alarido dos miseráveis que, arengando, disputavam o
segundo prato de guisado de borrego do Karim.