A um canto, num cadeirão de napa, um homem dormia, estiolado,
mãos de trabalho, rugosas, cheias de cortes, dedos inchados, unhas brancas de
cimento; viera para cumprir a obrigação que se impunha, apresentar os seus
sentimentos, dizer duas palavras à viúva, explicar-lhe que, no dia seguinte, por
se iniciar a cofragem na obra, não poderia vir para o funeral. O cansaço,
porém, fizera-o sentar-se no cadeirão, adormecera em pouco tempo. Dormia
profundamente há já meia hora. Sornava sem alarido. Sentadas, junto de uma
janela, como corvos espiando o bosque, duas velhas, casacos de lã escura, pés
enfiados em pantufas, murmuravam rezas novas. Negrume de mulheres sós,
escuridão funda e imensa. Estavam as velhas de olhos secos, mas expressão de
pesar, como convém nestas ocasiões. Em lugar de destaque, a viúva, mãos postas
no regaço, lábios tensos, parecia aliviada. Mulher indistinta, anódina, sem
traços ou marcas, quase invisível. Ao centro, enfiado num caixão de pinho
barato, recamado de cetim branco, o brilho dos tecidos baratos iluminando o
velório, estava o morto, corpo robusto, rosto descoberto, vestindo um fato de
três peças; nos pés, os sapatos que levara ao casamento da filha mais velha.
Quando alguém chegava, dirigia-se à viúva, dizia breves palavras de consolo,
partia pouco depois com a satisfação de uma obrigação cumprida. Quem chegava
não olhava o morto. Ninguém se abeirou sobre o caixão para o chorar ou ver pela
última vez o seu rosto. Homem mau, de costumes beras, nascera com a maldade no
corpo. Viera para o prédio muito novo, sem passado, nem lembranças, casado com
aquela mulher, trabalhava conforme calhava, um dia aqui, outro acolá.
Taciturno, pontapeava gatos, cães e crianças que se
atravessassem no caminho, bebia muito, arranjava sempre zaragatas,
engalfinhava-se em cenas de pancadaria, ficava com olhos inchados, equimoses,
chagas abertas que custavam pouco a sarar, passados dois ou três dias aparecia
como novo, entrava no café, pedia um copo de vinho, depois outro e mais outro.
A ruindade parecia ter nele um efeito regenerador, o diabo que lhe vivia no
corpo tratava-o com ligeireza mágica, punha-o bom num instante, assim,
recomposto, sem marca de humana fragilidade, podia voltar a ser simplesmente
mau. Tratava a mulher à pancada, as filhas também. Às vezes, trazia-as para a
escada do prédio para lhes bater à vista de todos. Suas putas, suas grandes
putas, ia dizendo enquanto lhes batia, as mulheres agachadas, mãos a proteger a
cabeça, acostumadas àquilo, incapazes de se sentirem vítimas, aguardando apenas
que se cansasse e recolhesse ao apartamento. Que a morte o tivesse vindo
buscar assim, ligeirinha e benevolente - um ataque súbito enquanto dormia em
frente do televisor, espumou da boca, levou as mãos ao peito, esperneou um
instante, soltou dois gritos mudos e foi-se – era coisa que indignava muita gente.
Quando se soube da notícia, pela manhã, houve até quem lamentasse ter tido uma
morte assim, devia ter sofrido como a vizinha do rés-do-chão esquerdo, o
carcinoma lento sugando-lhe tudo, desfazendo-a, arrancando-lhe o estômago e as
tripas, deixando-a liquefeita por dentro; gemeu a coitadinha durante dois meses
agarrada a um rosário da terra santa, abençoado por um bispo brasileiro, que
encomendou através do canal televisivo de uma igreja evangélica neopentecostal.