Há mobílias escuras e sofás de veludo surrado por toda a parte. Não se vislumbra um vestígio de beleza ou alegria. Em todas as divisões, nota-se um cheiro adocicado, de urina, de maturação excessiva, de fruta podre. À noite, os candeeiros lançam uma luz morrinhenta de alumiar mortos e sente-se uma permanente vibração provocada pelo tráfego da auto-estrada. O lar fica tão próximo dos rails que um dia a roda de um camião de carga se soltou, galgou para fora da estrada e foi bater com violência na parede da sala de convívio. Vitória, a preta dos chocalhos, a menina que veio no contentor dos patrões com as mobílias de pau-preto, os serviços de porcelana chinesa e as peles de crocodilo, estava encostada à parede onde o pneu bateu. Saiu ilesa, com apenas algumas escoriações no braço esquerdo, mas assustou-se, esteve sem falar e comer durante uma semana.
- Vá lá D. Vitória, seja boazinha. Abra a boca. Olhe que a D. Odete já comeu tudo! – ia dizendo a auxiliar, colher em riste, apontando para a velha do lado, a boca suja, babete atado com nastros esgaçados.
Vitória parecia não escutar. Emagreceu muito, era já só pele e ossos. Só arrebitou quando lhe explicaram que um jornalista da Tribuna a queria entrevistar. Telefonou para casa e pediu à neta que a fosse visitar no dia seguinte. Queria que a penteasse e, se fosse possível, lhe levasse uma camisola nova. Pediu também o fio de ouro com a medalha de Santa Justa. A rapariga disse que sim, mas não apareceu. Quando o jornalista chegou, um rapaz gordo, de palidez macilenta, Vitória ajeitou com as mãos o cabelo e alisou a blusa. Sentiu vergonha da sua velhice desmazelada. O jornalista esteve pouco tempo, fez-lhe duas ou três perguntas, tratou-a com a condescendência com que se tratam crianças, imbecis e velhos. À despedida, mandou Vitória sentar-se numa cadeira, mesmo ao lado do buraco provocado pelo embate do pneu. Pediu que sorrisse e tirou-lhe uma fotografia.