2015/06/17

Sainete

No Festival Literário da Gardunha, conheci o João Ricardo Pedro que, ao almoço, enquanto comíamos, desconsolados, um bacalhau desfeito numa cama de puré, explicou ter a certeza de que na vida apenas escreverá três ou quatro romances. Lembrei-me do Albert Cossery, escritor egípcio que fez a apologia da preguiça e do ócio. Cossery viveu até aos 90 anos e deixou apenas oito romances escritos. Foi um escritor de uma qualidade singular, raríssima, original. Se fazia a apologia da preguiça e do ócio não era por ser madraço, ou desprendido, mas por ver nestas atitudes o veículo essencial para uma actividade interior intensa de reflexão sobre a vida e o mundo. Numa das suas entrevistas, estranhava aqueles escritores que escrevem cinco páginas por dia. Referindo-se a esses escribas, explicou: “Não escrevem, apenas redigem um texto qualquer. Eu escrevo uma frase. Simplesmente, reviro-a vinte vezes para conseguir dizer alguma coisa.”  Às vezes, passeando pelas livrarias, folheando este e aquele livro, fico com a sensação de que são poucos os autores que reflectem sobre aquilo que escrevem e amadurecem as suas obras. Têm competência narrativa e pouco mais. Talvez muitos desses escritores sejam pressionados pelas suas editoras para publicar, não sei, talvez outros tantos procurem na escrita um certo prestígio social. Ser escritor dá muito sainete. Se me perguntarem o que sou e eu disser que sou bancária, ninguém me ligará, mas se disser que sou escritora, todos arremelgarão os olhos de admiração, pouco ou nada importando se o meu trabalho é bom ou mau. Acontece que os leitores, os verdadeiros leitores, não são tolos, são exigentes e inteligentes. Percebem quando um livro é um grande embuste. O que mais para aí há são livros que são grandes embustes. Quando falo de embustes não me refiro a esses livros que enchem as montras e os escaparates das livrarias. Esses, sendo o que são, pelo menos são autênticos, não aspiram à qualidade que a literatura, a verdadeira literatura reclama. Falo de um outro tipo de escrita, que se demarca dessa primeira, que goza até essa outra, a tal que é ligeira, light, mas que, bem vistas as coisas, muitas vezes, tantas vezes, não é muito diferente. Poderia enunciar uma mão cheia de autores, premiados, lidos, consagrados que melhor fariam em estrangular a voz e manter-se calados. E se não digo nomes é apenas por cobardia. Ser cobarde faz parte da minha natureza. Ao ouvir o João Ricardo Pedro dizer que apenas escreverá três ou quatro romances senti-me envergonhada por, cedendo à minha própria vaidade, miserável vaidadezinha, ter publicado uma colectânea de textos de um blogue, mais ainda por ter ficado magoada com a apreciação que a Lúcia fez do romance que escrevi.