2016/02/17

O gigante de Gulpilhares

Ontem, em Gulpilhares, num quarto com uma janela a dar para um quintal cheio de lixo e duas velhas magnólias de flores roxas, deitei-me com um gigante. Adepto do FCP, o gigante, apesar de doutorado em matemáticas aplicadas à gestão, não me pareceu um homem muito inteligente. Custou-me acompanhar a sua passada. É um estranho homem. Tem apenas um enorme olho na testa. É um só olho, mas vale por muitos: um belo olho redondo, de longos cílios revirados. Cada mão do gigante é do tamanho de uma melancia, cada pé do tamanho de um melão. A cabeça, grande como a de um boi, assusta a princípio. Mas, apesar das proporções gigantescas, pantagruélicas, e da estupidez evidente, foi o desconhecido mais afectuoso com quem já me deitei. Primeiro levou-me a ver o mar barrento e feroz, depois, no quarto com a janela que dá para as duas magnólias floridas, enterrou-se tão fundo que tive medo que me rompesse o avesso. À despedida, gentil, deu-me um prolongado beijo no rosto, tirou um cabelo branco caído na lapela do casaco preto e ficou à beira da estrada a ver-me desaparecer. “Liga-me quando chegares, pequenita.”, disse e o carinhoso uso do diminutivo deu-me vontade de chorar. Choro agora por tudo e por nada. Deve ser da idade. Voltei para Lisboa dorida, a sentir o cheiro do gigante nos pulsos, mas satisfeita. Ando cansada de pilas intelectuais, traumatizadas, existencialistas, titubeantes. Grande e grossa, ainda que versada em matemáticas aplicadas à gestão e, em certos momentos de maior entusiasmo, capaz de me provocar o vómito, a pila do gigante, de tão primitiva e animal, reconciliou-me com o mundo, seus insectos, pássaros e árvores. Quando parei na estação da Mealhada para comprar uma sandes de leitão para o meu filho mais velho (para os mais novos, se vou ao Porto, levo croissants tipo brioche da pastelaria Chaimite), ao sair do carro, pensei no quanto detesto a escrita da Ana Teresa Pereira e a poesia de certas novíssimas poetas portuguesas. Inveja pura: na verdade, não lhes invejo os versos, mas a juventude, os longos cabelos com vida, a pele macia, cheia de luz, os corpos tenros. Também deve ser da idade, esta inveja mesquinha que sinto. Na casa de banho da estação de serviço, para não me sentar no tampo da sanita, apoiei as mãos na parede e, enquanto escutava sair o jacto de mijo, morno e bem direccionado, pensei no gigante  à beira da estrada: o seu esplendoroso único olho ligeiramente embaciado, a mão a dizer-me adeus. Voltei a ter vontade de chorar. Não havia papel higiénico. Abanei o corpo para sacudir as pinguinhas.