2016/05/13

Dezassete segundos

Há uma aldeia em Goa que se chama Nuvem. Nessa aldeia, vive Fidélia, uma sinhá-moça que herdou duas fazendas em Paraíba, uma com quinhentos escravos, outra com setecentos e cinquenta. Fidélia demorou precisamente cem dias a atravessar o mundo para chegar a Nuvem. Não sabe por que veio, talvez para se livrar de Tristão e da herança, mas gostou da aldeia e ficou. Todos os dias acorda de madrugada, só para ver as mulheres sair da pequena igreja, depois de assistirem à primeira missa. Àquela hora do dia, a neblina matinal cobre o alçado do templo e as mulheres, apesar das pernas feias, corpos franzinos, com os seus longos cabelos negros, parecem-lhe estranhas fadas. Fidélia volta para casa às dez horas. Senta-se numa cadeira de baloiço e come o balchão de camarão que Rosa lhe prepara. Às vezes, depois de comer o balchão, sentindo ainda a boca ardente, passeia no jardim da casa. Observa as árvores, as aves e as flores. Espanta-se por serem tão diferentes das da sua infância. À tarde, quanto todos se deitam, Rosa, Maria e Pancrácio, o escravo que trouxe de Paraíba, Fidélia escuta os concertos de Brandenburgo, sobretudo o terceiro concerto, sobretudo o segundo andamento do terceiro concerto. Tem apenas dezassete segundos. Sentada na sua cadeira de madeira rosa, na mais completa solidão, no silêncio que nunca termina, Fidélia, a sinhá-moça de Paraíba, passa os dedos na boca ardente. Pensa então que a vida devia ser assim: ter exactamente dezassete segundos, ser um início, um suspiro, um curto lamento. Fidélia atravessou o mundo, viu fadas sair da igreja da aldeia, comeu balchão de camarão e escutou o segundo andamento do terceiro concerto de Brandenburgo. Não tem mais nada para fazer. Sente um enorme cansaço por ter tanta vida para viver.