2016/06/26

Batatas doces

Durante nove meses assistiu à alteração do seu corpo com distanciamento e estranheza. Às vezes, levava as mãos ao ventre, sentia o feto serpenteando como uma cobra. A gravidez não lhe suscitava amor antecipado pela cria, nem despertava qualquer instinto maternal, apenas uma sensação de extravagância que a confundia por não corresponder à habitual beatitude das primíparas. Mantinha-se à margem, não partilhando o entusiasmo de Ester que fez um enxoval luxuoso, digno de um pequeno príncipe: cueiros de piquet, toucas bordadas, casaquinhos de malha laminada, botinhas cardadas, interiores de fibras puras, muitos babygrows pedidos por catálogo, uns de veludo confortável, outros em jersey de algodão sem mangas e de pernas curtas para as noites mais quentes. Maria escudou-se numa alegria fingida e aguardou para ver. 
No dia do parto, por coincidência, domingo, estava sozinha em casa. O marido saíra logo cedo para comprar pão e lavar o carro. Naquele tempo, os homens de Sacavém tinham o hábito de se juntar, nas manhãs de sábado e domingo, no descampado junto à estrada nacional para a limpeza das suas viaturas. Encontravam no cumprimento desse dever uma desculpa para fugir dos filhos que, enfiados nos seus roupões de flanela, olhos ainda ramelosos, lhes pediam ajuda nos deveres de casa, também das mulheres, sobrolhos carregados, mãos na ilharga, exigindo a resolução de pequenos problemas domésticos: lâmpadas fundidas, canos rotos, algerozes entupidos, rachas e fissuras das paredes a precisar de betume. Salvos da ditadura doméstica, os homens aproveitavam essas manhãs para falarem de mecânica, partilhavam dicas sobre os melhores óleos lubrificantes, lavavam jantes e aplicavam ceras protectoras na carroçaria para evitar o aparecimento de manchas corrosivas de ferrugem. 
Na manhã em que deu à luz, Maria foi à casa de banho e despiu-se com dificuldade. Notou um muco gelatinoso, com laivos de sangue, nas cuecas. Olhou-se no espelho, nua. O seu corpo tornara-se num depósito, num enorme invólucro e isso, mais do que enternecê-la, aborrecia-a. Envergonhava-se desse tédio, julgando-se, por o sentir, indigna da maternidade. Apesar do corpo cheio, sentia-se vazia, simplesmente vazia. A meio da manhã, uma dor forte chegou e o útero empinou-se, rijo e piramidal. Maria percebeu que chegara a hora. Mudou de roupa e, sentindo uma calma que a espantava, deixou-se estar sentada no sofá da sala, aguardando que o marido voltasse. Chegou cansado, pouco passava do meio-dia, o jornal debaixo do braço, o saco do pão a rojar no chão. Antes que tivesse tempo de pousar as coisas em cima da bancada da cozinha, deu-lhe a novidade:
- Temos de ir para a maternidade.
- Rebentaram-te as águas?
- Ainda não, mas já tive três contracções.
O marido olhou-a com insegurança. Deu-lhe um abraço de tal modo apertado que Maria teve de pedir que a libertasse. 
- Olha que me sufocas! - Disse e, ao sentir a incerteza do marido, o enjoativo aroma do detergente que usava para lavar o carro, achou que o amava. Não era um amor de arrebatamentos, mas era exactamente o que queria, sólido, firme, um amor que chegava no tempo certo. 
O marido pegou na malinha que Maria preparara para a maternidade e desceu para ir buscar o Toyota Corolla que, há já algum tempo, passara a guardar numa garagem arrendada no prédio ao lado. Era uma despesa a mais, sobrecarregava o orçamento familiar, mas, depois da capota cinzenta ter sido vandalizada com uma pichagem solitária contra a propriedade privada, era a única forma de salvar a viatura da mesquinhez proletária de certa vizinhança sacavenense. Abriu a porta e, antes de que a mulher se sentasse, estendeu um oleado que, sem utilidade definida, costumava guardar no porta-bagagens. 
- É que podem rebentar-te as águas no caminho e ficam os estofos ensopados. 
Maria sorriu perante o sentido prático do marido. Lá fora, abafava. Era Outubro, tempo dos marmelos e dos aguaceiros brandos. Pela primeira vez desde que engravidara sentiu um desejo caprichoso e infantil. Lembrou-se das batatas-doces que a mãe costumava fritar às rodelas e que servia, como guloseima preciosa, na ceia de Natal. Teve vontade de as comer, cozidas, assadas, fritas, até cruas se preciso fosse. Quando voltasse da maternidade, pediria ao marido que as comprasse, havia de as fritar às rodelinhas muito finas, cobri-las com polvilho de açúcar e canela, tal qual a mãe fazia, comê-las vagarosamente, um prato cheio delas, uma de cada vez, até se empanturrar e saciar esse desejo que, chegando tardio, a confortava por a tornar igual às outras mulheres.