2016/06/16

Mãos

Todos os dias, enquanto espero a minha vez, desejo ser atendida pela D. Madalena ou pela Iris, uma rapariga de sorriso trocista e magníficos sobrolhos desenhados. Não tenho sorte. “Bom dia. O que deseja?”, pergunta a Lurdes com maus modos, seca, a querer despachar serviço. Respondo-lhe, procurando não olhar para as suas mãos, tento pensar noutras coisas. O esforço é inglório. Quanto mais tento pensar noutras coisas, mais o meu olhar é atraído para as mãos da Lurdes. Acabo, num vislumbre rápido, por fixá-las. Vermelhas, como se tivessem sido escaldadas em água a ferver, as canículas arrancadas, a polpa dos dedos esfarelada, as unhas postiças a esconder as verdadeiras, escamadas, amarelas de micoses e fungos. Sei que são assim porque volta e meia, à Lurdes, cai-lhe uma unha postiça e vejo o que está por baixo. Umas mãos assim devem cheirar a alhos grelados. Não aguento a visão das mãos da Lurdes. Fico agoniada. Sinto culpa por sentir agonia perante umas mãos que trabalham. Podia tomar o pequeno-almoço noutro café, no refeitório do banco, mas estou habituada a começar o dia ali, no snack-bar do Apolo 70, com o jornal, um café duplo e um pão com manteiga, entretida com as notícias, quase sempre distraída a observar quem passa. Os meus companheiros de pequeno-almoço, aqueles que diariamente espio, cujos gestos e manias conheço há muitos anos, são sempre os mesmos: o padre reformado que traz o buldogue ao colo, o ajudante de farmácia vaidoso, a mulher feia despeitada que critica a beleza alheia, a costureira pequenina da cave, sentada ao balcão de pernas cruzadas, os indianos da loja de telemóveis, rapazes sérios de bigodinhos ralos. Leio o jornal, bebo o café, trinco o pão com manteiga. Mal o mastigo. A minha vontade é deixá-lo no prato, mas tenho medo que a Lurdes perceba de que não o como por ter nojo das mãos que o prepararam. Não quero ofendê-la. Não gosto de ofender ninguém.