2009/03/31

Bricabraque

Enfio a mão no jarrão da entrada. Espreito dentro da terrina chinesa colocada no centro da mesa da sala de jantar. Espanto-me sempre com a quantidade de coisas que a minha mãe consegue guardar dentro dos bibelots lá de casa: lápis de pintura estalada, canetas, clips, papéis, corta-unhas, alfinetes, agulhas de crochet, cadeados, porcas e parafusos, fotografias, elásticos, brincos, pulseiras, batons do cieiro, bulas de medicamentos, brinquedos pequenos dos netos. Uma vez, há já alguns anos, até lá encontrei um dos dentes de ouro do meu pai. Fiquei a olhar para ele e a lembrar-me do embaraço que sentia cada vez que soltava uma gargalhada. Parecia um pirata, um cigano, um maltês, um bandido qualquer. Ele a rir-se, feliz, eu a desejar que fechasse depressa a boca para que a europeia decência lhe voltasse ao rosto. A verdade é que a tolice da minha pré-adolescência me fazia ter vergonha do dente de ouro do meu pai e também dos chinelos que ele usava nos pés aos fins-de-semana. Na altura, os pés usavam-se cobertos, escondidos em sapatos de vela ou sapatilhas da le coque sportif. O meu pai, de pés escancarados, os dedos feios e amarelecidos, ofendia-me com os seus hábitos de gente do sul. Uma autêntica pornografia podológica. Pego agora numa caixinha de argentaria, vinda de Lourenço Marques. A travessia do oceano, o vento salgado, deixou-lhe uma cor baça, triste. Verto tudo o que lá está dentro. Espalha-se o interior pela madeira de pau-preto. Tanta coisa, tanto quase-lixo. Não sei o que procuro. Não procuro nada. Quero apenas certificar-me que nada mudou nesta casa, que os objectos deste apartamento continuam guardiões das minudências dos dias dos meus pais. Um cheiro estranho de coisas velhas solta-se daquele bricabraque miniatura. Mistura-se o cheiro a ferrugem, que vem das chaves velhas da garagem, com o cheiro doce de um pacotinho de sementes de anis que a minha mãe trouxe do mercado de Margão.

(não vejo os meus pais há mais de três meses.)