Matou-a com trinta e quatro golpes de faca. Atingiu-a nos
braços, nas pernas, no tronco, vazou-lhe uma vista. O médico legista explicou
que, pelas marcas, se percebia que a ponta da faca fora torcida depois de
enterrada no olho. Para justificar tanta facada, o assassino explicou ao juiz
que encontrara, naquela tarde de Agosto, um outro homem em casa. O ciúme falou
mais alto. Pegou numa faca e, enquanto o calor abafava o apartamento,
escorrendo pelas paredes, esfaqueou a mulher. O calor era muito e talvez tenha sido esse calor
de Agosto, tão ardente, que lhe ateou a raiva e permitiu que o ódio se
apoderasse de si. Talvez, continuou o homem, se estivesse um dia mais fresco, a
raiva não tivesse ardido como ardeu.
Com o calor de Agosto, num instante, a fagulha se ateou e incendiou-lhe o
corpo. A culpa, via-se bem, era dele, que não era homem para a não assumir, mas
também do calor, do maldito calor de Agosto. O juiz escutou o assassino em
silêncio e encontrou beleza nas suas palavras. As vizinhas, durante o
julgamento, contaram os pormenores daquela vida. A pancadaria era muita e as
discussões permanentes. Discutiam por tudo e por nada. Por causa do dinheiro,
por causa do choro do menino, que tinha cólicas, mas, sobretudo, por
causa da televisão. Ele queria ver o domingo desportivo; ela queria ver as
telenovelas. Os gritos interrompiam o silêncio da noite. Eram gritos
lancinantes. Pareciam arrancados de dentro. O homem chamava muitos nomes à
mulher, nomes indecentes, porcos e ordinários, nomes que custava repetir ali,
na sala de audiências, na presença dos senhores doutores juízes. Porém,
explicaram as depoentes, quando amanhecia, a porta do apartamento abria-se e
saiam os dois, homem e mulher, a caminho da paragem do autocarro. Como se nada
se tivesse passado. Às vezes, quando a mulher trazia o corpo mais moído da
pancada, o homem aliviava-lhe a carga e levava o bebé ao colo. Uma mulher
contou que, muitas vezes, enquanto ele lhe batia, ela pedia “Amor, por
favor, não me batas na cabeça”.
(A última frase, lida há alguns anos num jornal, não me larga e, hoje, para o meu filho mais velho, para lhe mostrar a maldade de Deus, li uma passagem de um conto do Albert Cossery, o do barbeiro que mata a mulher.)