Três da manhã. Li o primeiro romance “faceto”, o primeiro “frívolo
livreco”, reli o segundo, tomei meio comprimido, bebi um chá de ervas muito
quente que me queimou o avesso. Animei-me com a Custódia, a Pascoela, a Eufémia
Tronchuda, a Felícia, esqueci até a irritação que me provocou a misógina comparação
entre a Fêmea e a Política. Consolada, julguei a noite ganha, pensei que adormeceria
rapidamente, esquecida do resto. Voltei porém a não conseguir adormecer. Dei
voltas e voltas na cama. Chegou a espertina habitual. Pensei em mil e uma
coisas. Em aulas de tango. No meu cabelo que não pára de cair. Na mulher de ancas largas desmerecendo um jovem
escritor. No entusiasmo apopléctico, deslumbrado, cheio de tremores, da M. em relação a um
outro que cheira mal dos sovacos. No cheiro da minha prima Filomena. No cheiro dos escabicidas. Em sudação animalesca. Nas contas que tenho para pagar. Em
Dunquerque. Na Cornualha. No meu filho João, distante, provocador, cada vez
mais bronco. Pensei também na primeira noite em Maputo. A noite quieta e o velho
da bomba de gasolina dançando sozinho ao som desta canção.