2016/01/04

Açucenas

O ruído de um carro a chegar à praceta desperta-me. Dou-me conta da atmosfera um pouco triste do quarto, a luz quebrada pelo abajur do candeeiro, sombras nas paredes, a janela ligeiramente aberta. Quero regressar aos meus pensamentos, mas o instante de revelação que ainda há pouco me fez sorrir passou. Levo a mão ao cabelo, pego numa madeixa e enrolo-a nos dedos. Não tenho mais nada para fazer, tratei dos meus filhos, planeei refeições, passei a ferro, mesmo assim continuarei aqui, acordada, à espera que o sono chegue. Coloco os braços sobre a barriga e, com as palmas das mãos, aliso o tecido do pijama. Aproximo-me da janela. O ano chegou com calor e trovoadas, o céu sempre baixo, carregado de água. As nuvens abatem-se sobre o rio e os apartamentos enchem-se de um estranho calor húmido. Lá fora, abafa, quase parece uma noite de Verão, a brisa é ligeira e as gotas da chuva rodopiam à roda da luz. Puxo as calças do pijama que insistem em descair e observo a rua. Os prédios, de quatro andares, têm uma cor que nunca consegui definir. Verde acastanhado ou castanho esverdeado. Há roupa a secar nos estendais: calças, camisas, meias, toalhas, lençóis. No segundo andar do prédio em frente, um rapaz descasca uma laranja e atira as cascas para a rua. Mais acima, a sombra que espiei na noite da passagem de ano continua a fumar. Desvio o olhar para as oliveiras da praceta, fixo o canteiro onde crescem fetos e patas de cavalo. Entre os fetos, uma mancha amarela, luminosa, mas pouco nítida. No canteiro há quatro ou cinco bolbos antigos de açucena que todos os anos, pela Primavera, florescem muito perfumados. Talvez este ano tenham florido mais cedo por causa do calor. Amanhã, quando sair, logo cedo, apanharei uma flor para colocar no solitário que está no aparador da sala. Ficará aquela haste cheia de campânulas, libertando doces aromas, mostrando-me uma beleza pura. Olho o relógio. Meia-noite. Vim cedo para o quarto, devia ter ficado mais algum tempo na cozinha, não sei bem a fazer o quê, talvez a arrumar a gaveta dos talheres. Depois de arrumar tudo, ainda pensei em ler os folhetos dos supermercados, no entanto, a ideia de acabar o dia sentada à mesa da cozinha, comparando preços, pareceu-me triste. Volto a observar o canteiro. Afinal enganei-me... As açucenas não floriram. Que pena... A mancha amarelada que se vê no canteiro é apenas uma fronha caída dos estendais. Olhando o pedaço de pano, vem-me à memória um detalhe que julgava esquecido: a cor do vestido que Isabel, mãe de um colega do meu filho, usou numa festa de final de ano lectivo. Era, recordo, um vestido drapeado, com ombros largos, exactamente daquela cor, um amarelo vivo, cheio de brilho. Estranho a recuperação da minha memória. Há tantas coisas de que gostaria de recordar, e, do nada, por causa de um pedaço de pano, fui lembrar-me da cor do vestido de uma desconhecida.