2016/01/28

Calendário

Por desconhecer os exactos termos em que a vontade do meu marido seria posta em prática, nos últimos anos de casamento, deitava-me e adormecia. Quando o meu marido chegava ao quarto encontrava-me a dormir. Quase sempre deitava-se ao meu lado e dormia também. Mas, por vezes, procurava-me. Esse despertar, sem amortecimento de qualquer espécie, agredia-me com uma violência que ainda hoje, depois de anos de terapia, não sou capaz de explicar. Nunca me habituei a essa passagem brusca. Num instante, dormia, sonhava, e o mundo era diferente, um mundo de árvores prateadas, gigantes amistosos, torres encarquilhadas de livros, frases misteriosas que apareciam escritas na areia de uma praia deserta. No momento seguinte, era obrigada a largar esse mundo incompreensível, de delírio e insanidade, que tanto me seduzia. Acordava e fugiam os gigantes, desfaziam-se as torres de livros, apagavam-se as frases escritas na areia. Era como se alguém me arrancasse de um lugar protegido, puxando-me pelos cabelos, arrastando-me por um caminho de pedras pontiagudas. Sentia cada toque, cada apertão, cada sopro no pescoço. A barriga mole e transpirada do meu marido esmagava o meu ventre. Chegava então uma tristeza intensa que me dava vontade de chorar, mas, por vergonha, procurava pensar em assuntos que me distraíssem dessa angústia. Para fugir do choro, pensava nas pequenas decisões que tinha de tomar, organizava a vida imediata, planeava as compras, decidia o que faria para a marmita dos meus filhos: segunda-feira, bifinhos com cogumelos, terça-feira, salsichas com lombardo, quarta-feira, arroz de atum, quinta-feira, frango frito, sexta-feira, douradinhos com esparguete. Incapaz de pôr fim ao meu casamento, odiando-me por isso, muitas vezes, desejei apenas o agendamento estanque da minha vida íntima. Ao dia tantos do mês ou ao domingo ou sempre que um dos nossos filhos tivesse 100% a matemática. A periodicidade, imaginava eu, evitaria pelo menos a angústia da incerteza, a impressão da espera, sobretudo o terror do despertar.