2006/12/28

Clara

Não sei em que dia foi. Nem em que mês. Só sei que foi antes do Verão. Usava uma saia de bombazina rodada e uma camisa branca com arabescos vermelhos. Lembro-me de ir na ambulância e de um bombeiro falar comigo. No hospital, enfiaram-me um tubo pela boca dentro. Durante a noite arranquei-o com as duas mãos. Doeu-me. Foi como se me arrancasse de mim própria. Ao meu lado, uma velha, muito velha, gemia. Adormeci. Pela manhã, cedo, levaram-me ao médico de serviço. Não lhe fixei o rosto. Só sei que era grande. Como um lutador de sumo. Perguntou-me se queria ir descansar para o Júlio de Matos. Disse-lhe que não. Dispensava o estigma. Foi precisamente esta a palavra que utilizei. Estigma. No preciso instante em que utilizei esta palavra tive noção da sua desadequação. O médico receitou-me uns comprimidos e disse para, em quinze dias, ir a uma consulta de psiquiatria. Anui. Procurei o meu casaco e saí para fora. O meu marido esperava-me. Olhei-o e, não sei porquê, desatei a rir à gargalhada. Quanto mais olhava para ele, triste como um animal manso, esguio, esquálido, mais vontade tinha de rir. Ele abriu a porta do carro. Sentei-me. Pelos vidros passeavam-se os prédios, as árvores e os cartazes da avenida. Continuei a rir. O meu corpo sacolejava com as gargalhadas. Ouvia-se o silêncio do meu marido e eu sempre a rir. Depois parei e vomitei.