2009/10/20

Inquietação

Saio do Ministério. O porteiro faz-me mil salamaleques. Cumprimentos que são quase vénias. Senhora doutora para aqui e senhora doutora para ali. Sorrio. Convenço-me que mereço tantas mesuras, eu que sou tão medíocre. Estava preocupada com os assessores, os directores, os tecnocratas, os senhores de fato e gravata que esgravatam na máquina do Estado. Correu bem, afinal. Começo a subir a Infante Santo. Alguém me chama. É uma mulher baixinha, de cabelos brancos. Veste um anorak de um vermelho desbotado. Por cima da camisa, usa um cinto demasiado largo, muito datado, antigo, que lhe marca a esfericidade do corpo. Também esteve presente na reunião. Fixei-lhe o nome. Amélia dos olhos doces. Oferece-me boleia. Contrariada, digo-lhe que sim. Queria aproveitar o fim da tempestade. Subir ao Jardim da Estrela. Descer depois ao Rato. Imagino que não tenhamos nada em comum a não ser a portabilidade das pensões complementares no espaço comunitário. Falamos sobre tal assunto. Ela fala entusiasticamente. Eu vou respondendo. Debito as preocupações da Polónia que li num relatório qualquer do conselho. Às tantas, na rádio, uma canção desperta-me daquela dormência. Com tantas guerras que travei, já não sei fazer as pazes. Estremeço. Reparo que ela a canta baixinho. Pergunto-lhe se gosta daquela canção. Diz-me que sim, que gosta muito. Esquecemos de imediato as reuniões do conselho e da comissão. Esquecemos as pensões complementares, os regimes complementares, o princípio da subsidariedade e o da portabilidade. Avançamos manhã fora pela cidade.
(é esta semana.)