Não
sei explicar a noite. Não gosto da noite. Só as noites em Goa me trouxeram
sossego e felicidade. Assim que o meu pai adormecia, corria a buscar uma
cerveja ao frigorífico e fugia para o terraço. Arrastava uma cadeira para a
beirinha do estendal, afastava as roupas tesas que a Caetaninha deixava
estendidas pela manhã e acendia um cigarro. Esse era o instante preciso em que
a noite se transformava. Tornava-se mais intensa, ficava com corpo de mulher e
eu encostava-me nela. Passei as noites ali, no terraço, olhando a linha da
estrada que leva ao Seminário de Rachol. Escutava os ruídos: pássaros, matilhas
de cães passando nas várzeas, o vento afagando as folhas do tamarindo,
chupando-lhe o azedo dos frutos, o sacolejar da cerveja dentro da garrafa, os
deuses brincando junto do tulsi, a ventoinha no quarto do meu pai. Pelas
frestas do telhado chegava-me, por vezes, o ressonar da tia Maria e os soluços
do Cristo falante. Chora o Cristo falante noites inteiras porque tem saudades
do tio Rosário. Eu sei que tem. À noite, o mundo reduzia-se aos seus sons e na
sua penumbra só eu existia.
(Setembro/2007)