2012/09/27

Foice e martelo


Voltei ao Porto. Trouxe da loja do Rui Carlos vários livros de uma tal Luísa Teles, conhecida professora, que morreu há coisa de dois anos, sozinha num apartamento de tectos estucados. Ao que parece era uma velha com muito mau feitio, autêntico camafeu, deu-lhe uma convulsão, espumou da boca, arranhou o rosto com as unhas azuladas e finou-se num instantinho.

Entre outras coisas, trouxe uma edição muito bonita e sóbria - título e nome do autor emoldurados a vermelho e cor-de-laranja - de “Uma abelha na chuva”. É um consolo olhar para um livro assim.  Também trouxe uma colectânea de poesia árabe. Não sou apreciadora de poesia tal como não sou apreciadora de bacalhau ou de bebidas brancas. Sei que é uma falha grave para quem alardeia o gosto da leitura. Vai daí, lá de vez em quando, faço um esforço. Ainda este Verão, a Mila, enquanto molhávamos os pés na água fria, me falou com emoção de um poema da Natália Correia. Fui à procura dele, li-o e nada, nem ai, nem ui, palavras bonitinhas, coceguentas, pouco mais. A poesia não me aquece, nem me arrefece, dá-me sonolência e um aborrecimento de frígida. Trouxe mais quatro ou cinco livros de escritores portugueses que são os que mais gosto de ler. Mas o grosso da escolha recaiu sobre vários livros da Agustina Bessa-Luís, antigas edições da Guimarães, que as novas, as azuis, da defunta Babel dão-me calafrios, pretensiosas, feias, tão canastronas.

O Rui Carlos, antes de me entregar os livros, passou-os a pente fino, tirou bilhetes, contas, folhas, flores, vários esboços de desenhos, duas cartas em papel translúcido, caligrafia inclinada, maiúsculas dramáticas, de golpe acentuado. Perante o meu protesto, explicou que prometera aos filhos da tal Luísa Teles preservar a intimidade da mãe. Fiz beicinho a ver se o demovia. Sou um homem de palavra, Aninhas, escusas de fazer essa carinha laroca, espetar o rabo nessa saia justa e bater as pálpebras, que não me convences. Ficou um montinho de papéis em cima do tampo de mármore, o último era um cartão de militante do PCP, bem vi a foice e o martelo; eu, aguada, a olhar.