2007/04/17

Guaxinim

No comboio, um homem negro, escuro como breu, um preto retinto como a minha mãe costuma dizer, lê um dicionário de inglês-português. Está vestido de branco dos pés à cabeça. Calças brancas, camisola branca, anorak da adidas branco, sapatilhas branca, boné branco. O branco que o envolve acentua a sua negritude. O homem é a noite e tem, reparo agora, uma cicatriz em forma de estrela no rosto. Ao seu lado, uma mulher grande, de cabelos longos e encaracolados, dorme com a cabeça tombada para trás. Traz os olhos exageradamente pintados de preto e branco e, no pescoço assim esticado, uma linha incerta mostra até onde espalhou uma base cor de argila. Parece um guaxinim adormecido. Um movimento brusco do comboio e a cabeça da mulher guaximim resvala para o ombro do homem negro. Ele levanta os olhos e, por breves segundos, fixa os meus. Quer, parece-me, compartilhar comigo a estranheza daquele corpo de mulher branca encostado em si que é a noite. Depois continua a ler o dicionário da verbo editora.