2006/07/18

Gárgula

Conto os anjos do altar. São setenta e dois. Efebos alados. Uns têm feições masculinas, outros não. Anjos castrados, eunucos. O altar é feio. Parece ter sido revestido a película de alumínio dourada. Consiste numa estrutura de degraus. Por cima há sempre jarras com ramos de flores. Hoje são hortenses brancas. A semana passada eram gladíolos altos que, tombando, se assemelhavam a velhos curvados pelo peso dos anos. Gosto de gladíolos. E gosto da quietude das igrejas. Aborrece-me entrar numa igreja e descobrir que é hora da missa. Não preciso de intermediários que me ensinem a compreender o mundo. Dispenso-os. Tenho a pretensão e a triste arrogância dos que se julgam iluminados. Conheço bem esta igreja. Os veios nacarados da pedra escura que a reveste. Os vitrais laterais. Já contei as caixas de esmola. São muitas. Demasiadas. Sei onde se localizam os quatro confessionários, escuros e sombrios, preparados para receber os segredos, acolher a imundície de quem por lá passa. Que se dirá num confessionário? Na porta dos confessionários há um papelinho com o horário das confissões. Dois padres revezam-se em tal função. Um chama-se Henrique e outro Manuel Fernandes. Sento-me sempre no meio da igreja. Umas vezes penso. Nisto e naquilo. Outras vezes não penso em nada. Limito-me a estar. Deixo de ser. Esvazio-me completamente. É bom quando isso acontece. Hoje, que aqui estou, penso. A propósito de um livro que li ontem aos miúdos, penso em gárgulas, daquelas medievas, com corpo de criaturas monstruosas, medonhas, de bocarra aberta e orelhas pontiagudas. Há poucas nos edifícios desta cidade. Ou nenhumas. Paris é uma cidade de cheia de gárgulas. Lisboa não. É pena. Uma cidade com gárgulas tem outra pinta.