2006/07/13

Vizinho (2)

Sempre que me encontra fala-me, com genuíno entusiasmo, de escritores goeses e desafia-me a ir à Índia. Eu desculpo-me com os miúdos. E entristeço. Gosto dele. Tem a delicadeza e a beleza das porcelanas antigas. Uma beleza quase translúcida de tão fina. De há uns meses para cá, passou a visitar regularmente o meu pai. Sem aviso prévio, mete-se no elevador e desce do sétimo até ao terceiro andar. Traz uma taça de amendoins cozidos em água e sal. Sentam-se os dois nas poltronas da sala. Bebem uisquis cheios de gelo e água gaseificada. O meu pai fala, fala, fala, feliz por ter alguém que o oiça. Ele ouve-o e, com admirável paciência, tenta argumentar contra as delirantes teorias que o meu pai inventa para explicar o mundo. Estão nisto a noite toda. A minha mãe é que não gosta muito. Sente-se na obrigação de lhes fazer companhia. Chega-lhes a preparar chutney de coentros e a fritar paparis. Acompanha tudo com sorrisinhos falsos. Fica a ouvir dois goeses velhos a conversar sobre coisas que não lhe interessam. O que ela queria mesmo era sossego para ver os últimos episódios da telenovela. Hoje, quando lhe fui deixar a Madalena e me espantei por a ver ainda deitada, ela piscou os olhos pequeninos e gritou-me “O Dr. Estrócio saiu cá de casa eram quase três da manhã!”. E, enfiou, de novo, a cabeça dentro dos lençóis, furiosa com o meu pobre pai. Não percebe que a Índia faz parte de nós, do meu pai, de mim, dos meus filhos, dos meus irmãos, dela também. Tem permissão para entrar, quando quiser, como quiser, por onde quiser, nas nossas vidas. Através das imagens ferozes dos comboios que explodiram em Bombaim, mas também através do vizinho solitário que mora no sétimo andar.