2007/09/18

Amanhecer (1)

Chego cedo à estação. Apanho o comboio das oito e cinquenta. Vem cheio. No Oriente, esvazia-se de gente. Sento-me perto da janela. A mulher, sentada à minha frente, dorme profundamente. Tem a cabeça encostada ao vidro. Da boca sai-lhe um bafo morno que embacia o vidro. As pernas dela tocam as minhas. Tem os dois pés em cima do degrauzinho que fica por baixo da janela. As colunas do comboio vomitam baixinho uma música de feira. É bonita, distante, fantasmagórica até. Lembra-me outros tempos. Parece o som de um realejo. Um carrossel, uma pista de carrinhos de choque, maçãs caramelizadas, algodão doce, uma máquina de ler a sina, o poço da morte, o comboio fantasma, pipocas, um palhaço com balões coloridos, outro que faz malabarismos com bolas amarelas e vermelhas. Vejo o rio cinzento, espelho de transparências e luz. Marvila. Chelas. O cemitério do Alto de São João assoma-se do alto de uma colina. Ciprestes e lápides brancas. Ao lado, erguem-se uns prédios amarelos, novos, altos, feios. Parecem feitos de papelão. Se chover muito, se vier aí uma tempestade, daquelas que uivam e ribombam, o papelão ensopar-se-á e os prédios tornar-se-ão numa papa mole, castanha, que desaguará nas águas e servirá de alimento às tainhas e às medusas brancas do rio. Não me apetece ir trabalhar. Também não me apetece continuar dentro do comboio. Saio na estação anterior. Quero andar. Sempre gostei de andar. O frio da manhã morde-me mansamente as carnes do rosto. Ando rapidamente. Penso. Questiono-me, também. Não me compreendo. Os gestos, os silêncios, o enfado, as omissões, a posição inadequada, fazem de mim um ser estranho, alguém que propositadamente se coloca à margem da vida e dos outros.