Não sou capaz de me olhar nas vitrinas das lojas, nem nas vidraças das entradas dos prédios. Invejo cada pessoa que passa. Invejo a mulher de cabelos compridos, bem penteada, bem maquilhada, com cheiro de luxo. Desce a rua e leva pela mão uma menina feia, que usa sapatos azuis de fivela. Invejo também o homem, de fato escuro, que, ainda com o cabelo molhado, sai de um prédio que tem uma porta de ferro. Deve ser advogado, gestor, auditor, director de qualquer coisa. Também tem cara de dentista. Cruzo-me com duas mulheres de bata branca e lenços brancos. Falam alegremente. As palavras fogem-lhes, felizes, da boca. Entram num restaurante. Devem ser cozinheiras. Também gostava de trabalhar com as mãos. Não são umas mãos muito hábeis, as minhas, mas gostava que desempenhassem outra tarefa que não bater as teclas de um computador. Podia ser cozinheira. Eu gostava. Ou jardineira. Ou mulher-a-dias, usar um avental branco, trabalhar num apartamento de luxo para um casal de sucesso. Trabalhar nas obras, colocar tijolo, cimento, estucar, ladrilhar, rebocar, pintar. Gostava de acabar o dia com o corpo fisicamente cansado e saber porquê. Continuo a andar. Sinto que é tarde. Tarde de mais. Esta frase – é tarde de mais – é fatalista, tão pouco bonita; é frase de folhetins, frase comum nos romances cor-de-rosa. Que se lixe. É o que sinto. Olho para o viaduto da Avenida da República. Por baixo das estruturas de betão cor-de-rosa, os carros, que vão para Entrecampos, passam apressados. Quem dali saltar tem uma morte santa, imediata, aparatosa, quiçá até com direito a uma notícia pequena nas páginas do Correio da Manhã ou do 24 Horas. Ao chegar à minha rua, no semáforo, cruzo-me com caras, rostos, traços que reconheço dos meus dias. São as pessoas que, como eu, apanham o comboio das nove e seis. Entro no meu edifício. Passo o cartão pela máquina. Aparece o meu nome, escrito em letras de luz vermelha. O torniquete abre-se. Entro.