2007/09/22

Anis

Mudei de mesa convencida de que o cheiro que me entrava pelas narinas, intenso e insuportavelmente doce, provinha da velha que, sentada na mesa de trás, bebia um galão pingado e comia um pastel de nata. As senhoras velhas têm muitas vezes cheiros assim, doces e intensos. Tomam banho em perfumes e águas-de-colónia das lojas chinesas. Usam roupas que cheiram a estrelas de anis. Sentada na outra ponta do café preparei-me para retomar a leitura do jornal. Preciso de ler pela manhã o jornal em sossego, sem distracções visuais ou olfactivas. Passado pouco tempo o cheiro voltou. Olhei em redor. Funguei. Farejei. Abri e fechei as minhas narinas caninas. Inalei o ar. Insultei baixinho a pobre senhora que, na outra ponta, continuava a comer o seu pastel de nata com lentidão. Desejei que lhe caísse a dentadura para dentro do copo de leite. Uma vingança por largar aquele cheiro nauseabundo de loja dos trezentos pelo café, um cheiro que começava a entrar-me no corpo, que já se colara à minha roupa e ao meu cabelo. Quando cheguei à página da necrologia percebi que era o jornal que largava aquele cheiro. Era. Fui à tabacaria reclamar. Exigi que me trocassem o jornal, que não o conseguia ler, que era uma vergonha venderem um jornal com um cheiro daqueles. A menina da tabacaria, muito recta, escutou-me em silêncio, mostrando-me as suas magníficas unhas de gel com brilhantes incrustados. Depois disse que não se trocavam jornais. Se fosse uma revista, ainda fechava os olhos, agora um jornal não podia aceitar. Peguei no jornal com as pontas dos dedos e sai da loja. Deitei-o fora no primeiro caixote do lixo que encontrei. Entrei no elevador que dá acesso ao parque de estacionamento para fugir daquele cheiro. Antes das portas se fecharem entrou a velha senhora que minutos antes eu fuzilara com o olhar no café. Sorriu-me, depois deu uma bufa ruidosa e saiu no menos dois.