2007/09/03

Mentol

Gosto de música. Oiço todo o tipo de música. Boa e má. Só não oiço música clássica. Mas já fiz um esforço para gostar. Quando andava na faculdade cheguei mesmo a ir a dois concertos na Gulbenkian, arrastada por um colega, redondo, ufano e pretensioso, que andava a tentar impressionar-me com os seus interesses intelectuais e elitistas. Se me conhecesse um bocadinho melhor, saberia que me impressionaria bem mais um convite para passar uma noite no Ritz Club, a dançar mornas e coladeras, ou se me tivesse oferecido um disco do Travadinha ou do Tito Paris. Durante o concerto, em vez de ficar quietinho na cadeira, como a imponência da música requeria, pôs-se a abanar a cabecinha e a bater os dedos gordos na cadeira para me dar a entender que conhecia bem a partitura. Ao terceiro convite tive que lhe dizer que não aguentaria outra investida ao mundo da música clássica. Expliquei-lhe que o problema era meu, que os meus ouvidos, infelizmente, eram incapazes de se deleitar com tais acordes. Que gostava de coisas banais e comezinhas. Ele não desistiu e, em alternativa, sabendo que eu gostava de cinema, convidou-me para ir ver o Imperdoável, do Clint Eastwood. Foi pior a emenda que o soneto. Antes de entrarmos para a sala, reconhecendo a sua gula, comprou um cartuxo de rebuçados de mentol. Quando nos sentámos, ofereceu-me um. Um mísero rebuçado. Depois, para meu espanto, comeu os outros todos de enfiada, fazendo um ruído ensurdecedor. Cada vez que comia um rebuçado, dava duas ou três chupadelas ruidosas, quase cavalares. Em seguida, utilizando todas as capacidades que os seus caninos lhe permitiam, trincava-os. Dilacerava-os, mastigava-os, deixando no ar um cheiro enjoativo a mentol. Quando o filme acabou, reparei que tinha a língua verde, coisa que me causou uma agonia imensa. Continuámos a ver-nos depois de terminar o curso. Ainda chegámos a almoçar algumas vezes. Ele, entretanto, tornara-se - na postura, no aspecto, na maneira com estava e como falava - num verdadeiro senhor doutor, coisa na qual eu não me tornara. Isso causava-lhe um certo incómodo. Aliás, lembro-me que, num desses almoços, teve a distinta lata de fazer um reparo à canadiana cinzenta, coçada, que eu levava vestida. Disse-me que já conhecia aquele casaco da faculdade e que o achava inadequado ao meu novo estatuto. Ele, pelo contrário, assumia, com empenho e alegria, o seu novo estatuto. Tinha um Alfa-Romeu preto e levava-me sempre a restaurante caros, cheios de homens engravatados e de mulheres com madeixas e nuances no cabelo. Passava os almoços a gabar-se de como era um profissional respeitado e de como todas as empresas o queriam para director de qualquer coisa. Comia com a boca aberta. Uma vez chegou mesmo a dizer-me quanto ganhava e a perguntar-me quanto é que eu, jurista de um instituto público, recebia no final do mês. Eu, atordoada com tal pergunta, disse-lhe. Olhou-me com um ar misericordioso, como quem diz, coitadinha. Tanta coisa, tanta merda, mas a verdade é que, no fim, dividíamos sempre a conta. Nunca mais lhe respondi aos convites. Deixei de lhe falar. Nesse dia, decidi que não voltaria a fazer fretes. Que não voltaria a aturar gente que não me diz nada. Gente que me é insuportável. E não aturo.