Tenho uma grande constipação,
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do universo,
Zangam-nos contra a vida,
E fazem espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.
Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.
Excusez un peu... Que grande constipação física!
Preciso de verdade e da aspirina.
Álvaro de Campos
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2006/12/29
2006/12/28
Clara
Não sei em que dia foi. Nem em que mês. Só sei que foi antes do Verão. Usava uma saia de bombazina rodada e uma camisa branca com arabescos vermelhos. Lembro-me de ir na ambulância e de um bombeiro falar comigo. No hospital, enfiaram-me um tubo pela boca dentro. Durante a noite arranquei-o com as duas mãos. Doeu-me. Foi como se me arrancasse de mim própria. Ao meu lado, uma velha, muito velha, gemia. Adormeci. Pela manhã, cedo, levaram-me ao médico de serviço. Não lhe fixei o rosto. Só sei que era grande. Como um lutador de sumo. Perguntou-me se queria ir descansar para o Júlio de Matos. Disse-lhe que não. Dispensava o estigma. Foi precisamente esta a palavra que utilizei. Estigma. No preciso instante em que utilizei esta palavra tive noção da sua desadequação. O médico receitou-me uns comprimidos e disse para, em quinze dias, ir a uma consulta de psiquiatria. Anui. Procurei o meu casaco e saí para fora. O meu marido esperava-me. Olhei-o e, não sei porquê, desatei a rir à gargalhada. Quanto mais olhava para ele, triste como um animal manso, esguio, esquálido, mais vontade tinha de rir. Ele abriu a porta do carro. Sentei-me. Pelos vidros passeavam-se os prédios, as árvores e os cartazes da avenida. Continuei a rir. O meu corpo sacolejava com as gargalhadas. Ouvia-se o silêncio do meu marido e eu sempre a rir. Depois parei e vomitei.
2006/12/27
Marsiglia
A Mila foi a Veneza e trouxe-me um sabonete de marselha. Melhor, um sabonne de marsiglia, que é o que se lê na etrusca embalagem. Ri-me. Ela também se riu ao perceber que eu, apesar de não muito esperta, captara o sentido daquele presente. É que o Manuel da Silva Ramos, no seu último livro, um manicómio de palavras que ambas lemos, confessa lavar vigorosamente o seu pénis com sabão de marselha (ele, um descaradão, chama-lhe mesmo caralho, eu é que não lhe chamo assim, por ser donzela casta, delicada, contida, incapaz de utilizar tal palavra.)
Muda
Desde pequena que sonho partir um braço ou, em alternativa, ficar afónica. Infelizmente, tal nunca sucedeu. Os meus braços mantiveram-se sãos e inteiros à custa da benévola tirania da tia Dé que gritava mal nos via cabriolando. Chegou a sugeriu aos meus pais que brincássemos de capacete na cabeça para evitar traumatismos cranianos. Quanto à mudez, quis o destino, esse malvado, que constipações e gripes nunca me atingissem a fala. Cada vez que acordava um pouco mais rouca almejava estar afónica, para não ser interpelada pelas professoras e fazer ar de coitadinha no recreio da escola. Hoje acordei ranhosa, com uma aspereza muito grande na garganta. Pensei. É desta que estou afónica. É desta que vou passar o dia a fazer sinais às pessoas, a dizer que não posso falar. Enganei-me. Quando os miúdos se pegaram ao pequeno-almoço, supliquei-lhes que parassem. “A vossa pobre mãe está doente!”, disse-lhes baixinho. Ignoraram-me. Detesto que me ignorem. Fugi pelo corredor, tiritando de frio, enfiando as calças, e dei-lhes um grito que deve ter-se ouvido no sétimo andar. Voltei para o quarto, resmungando contra as agruras matinais da minha vida. Foi, pois, com enorme desilusão, que percebi que não estou afónica. Estou só muito ranhosa e um pouco rouca.
2006/12/26
Índia
(Ainda me custa acreditar. Começo a ficar nervosa. Tenho vontade de vomitar. Os nervos dão-me para isto. Cada vez que penso nos miúdos tenho vontade de desistir. Ela quer que lhe traga um esquilo do quintal. Prometes, mamã? Prometo, filha. Ele não percebe que interesse posso ter em conhecer um país onde, em vez de futebol, se joga críquete. É muito homem, o meu filho.)
Libélulas
Quando estou em baixo, que não é o caso, para além dos comprimidos letais lembro-me do senhor-professor-doutor-poeta-não-surrealista-que-hoje-faz-anos, passeando, vagaroso, pelo bosque de árvores centenárias, onde vivem libélulas gigantes que meninos salvam dos lagos com pauzinhos e caninhas. Com a sua voz, um ribeiro de água transparente e fria, disse que eu, Ana Clara Costa Cássia Rebelo, sou uma mulher muito interessante e enigmática. Sinto-me logo melhor quando penso nisto. Até me esqueço do buço proeminente, da pele acneica e daquela questão sexual que me perturba. Mas não tem razão, o poeta. Sou interessante, é verdade, apesar disso resultar, em parte, da psicose de que padeço. Mas não sou enigmática. Nadinha.
Serafim
O peixe está moribundo. Flutua no balão de vidro, com o papo muito inchado, as barbatanas murchinhas, os olhos remelgados, fixos no tecto. Parece um astronauta dentro de uma nave espacial. Flutua como se não houvesse gravidade, sempre de barriguinha para cima. Uma coisa estranhíssima. Por mim, há muito, que o teria deitado pela retrete abaixo. A Cristina, minha colega de gabinete, é que mo proibiu. Abriu-me muito os olhos e disse “ Ana, não te atrevas!” Gosto tanto da Cristina, mas desconfio que ela é contra a eutanásia. Pobre Serafim, vai penar até se finar.
2006/12/21
Irritações
Já não posso com botas de cavaleira, artefactos feitos em feltro (colares, bonecas, bonequinhas, bolsas, malas, pregadores, brincos) e unhas pintadas de vermelho escuro. Até a anã, responsável pela loja de animais onde costumo ir, que tem para aí um metro de altura e voz de falsete (faz lembrar um roedor), usava as unhas pintadas de vermelho escuro. Fiquei agoniada e feliz por ter as unhas ratadas, branquinhas, cheiinhas de peles. As mulheres chegam a ser quase tão estúpidas como os homens.
2006/12/20
Mexia
Nunca comento blogs alheios. Aliás, para me colocar acima da ralé, finjo que os não leio (na verdade leio três ou quatro blogs). Só que desta vez não aguento. O Pedro Mexia, que tem um dos poucos blogs que me habituei a ler, assegura que numa semana foi três vezes ao teatro. Explica que esse devaneio, esse exagero teatral só ocorreu porque estava em Londres, cosmopolita, moderna, diversificada, e não em Lisboa, armada aos cucos, bolorenta. É uma atitude tristemente provinciana. Condiz em absoluto com a infundada vaidade que enche o traseiro, quase de certeza furunculoso, do Pedro Mexia.
Desejo
O ano passado formulei três desejos para 2006: ter outro sobrinho, ir à Índia e arranjar umas sapatilhas all star pretas iguais às daquele rapaz engraçado que é vocalista dos Stroke. Realizaram-se dois dos meus desejos. Desisti das sapatilhas (não tenho idade nem estilo para andar de all star pretas). Não está nada mal. Como a coisa correu tão bem em 2006, tenho de pensar, com cuidado, nos desejos para 2007. O mais evidente seria pedir de volta a minha libido, aquela que nasceu comigo e que, desde criança, me acompanhou como boa amiga, nunca me envergonhando, apesar de descarada e desregrada. Viver assim amputada, entregando-me aos outros, sem me entregar a mim, não está com nada. Provoca, aliás, imensa frustração. Há quem viva bem sem sexo, entregando-se aos filhos, à casa, à carreira, ao tricot, às viagens, ao marido, às lojas das avenidas. Não é o meu caso. Não há nada como sentir a cama como uma enxovia. Não há nada como nos tocarem nas mamas e sentirmo-las flácidas, amorfas, distraídas. Dá vontade de as espancar. Enfim, uma tragédia. Porém, pensando bem no assunto, há uma coisa que me daria mais satisfação do que ter de volta a libido. Há. Já sei o que pedir.
2006/12/19
Visconde cortado ao meio
Voltei a encontrar o visconde cortado ao meio, a metade de homem que mendiga na estação dos Restauradores. Gritava com um outro homem que, inteiro, de pele tisnada, se assemelhava a um espectro. Era óbvio que rondava as poucas moedas arrecadadas durante a manhã pelo homem cortado ao meio. Fico sempre na dúvida. Terá ou não pénis? Em princípio tem pénis para urinar e ânus para defecar. Mas entumecerá o seu pénis? Terá companheira? Haverá quem se deite com o visconde cortado ao meio? No livro do Albert Cossery, Altivos e Mendigos (ou mendigos e altivos, nunca sei), há um homem assim, decepado, que, para espanto dos outros, provoca um ciúme doentio à sua mulher. Cada vez que passo pelo visconde cortado ao meio olho-o de viés, fixando-me nas suas partes baixas. Nada transparece. E se alguém por ali passar e, com maldade, lhe der um piparote, um empurrão? Ficará deitado, desesperado, bramindo ajuda aos transeuntes apressados da avenida que passam a caminho de sítio nenhum.
Confissões
Duas confissões. Primeira: Nem tudo o que aqui se escreve é verdade. Por exemplo, sou levemente frígida e depressiva, mas não sou nem alcoólica, nem suicida. Segunda: Gosto mais do Bryan Adams do que do Ryan Adams, o que, no panorama actual, me torna assim num ser abjecto e desprezível.
2006/12/18
Mandamentos
Esta noite não fumarás. Cigarro atrás de cigarro. Até ficares com a boca com gosto e cheiro de estrebaria. Um odor acre de mijo de caprinos ao acordar. Esta noite não beberás. Nem martinis. Nem copos de uisqui com água gaseificada. Nem copos de vinho. Nem cervejas pretas. Esta noite não lerás. Nem a Bíblia dos Capuchinhos. Nem o livro de capa amarela e letras azuis. Com frases e pessoas inacabadas lá dentro. Nem o outro de capa castanha e letras bege que um colega de escritório te ofereceu no Natal. Esta noite não ligarás o pc. Personal computer. Deixa-o dormir na quietude fria da noite que é animal de estimação como outro qualquer. Esta noite não escreverás. Em sítio nenhum. Só deve escrever quem sabe. Ignorarás a Domitília Vento, a Rosa Maria, a Guiomar, a Judite e a mulher albina, de olhar simiesco, da estação de comboios. São mulheres que vivem dentro da tua cabeça. Esta noite não tomarás os comprimidos que escondes numa caixinha de cartolina roxa por baixo das cuecas e sutians. Estás demasiado cansada para morrer. Às vezes é menos cansativo viver do que morrer. (Parolada dos diabos.)
Bailarina russa
- Gostas mais do Chico Duarte, do Zeca Afonso ou do Sergio Gordinho?
- Gosto de todos.
- Mas gostas mais de qual? Diz!
- Gosto mais do Zeca Afonso.
- Porquê?
- Não sei. E tu?
- Gosto mais do Chico Duarte.
- Porquê?
- Porque tem bigode e canta a canção do João e da Maria.
- É bonita, essa canção.
- Mas também gosto das canções da Floribela.
- Eu também gosto.
- Gosto do Chico Duarte e da Floribela.
(Sentada na bancada da cozinha, com um penteado de bailarina russa, cheio de ganchos, elásticos e tranças, teatraliza a cantiga do formiga no carreiro. Exige que a emite. Aos nossos pés, a Julieta boceja. Sou uma mãe estupidamente babada. Credo. Como vou passar um mês, inteirinho, sem os ver?)
- Gosto de todos.
- Mas gostas mais de qual? Diz!
- Gosto mais do Zeca Afonso.
- Porquê?
- Não sei. E tu?
- Gosto mais do Chico Duarte.
- Porquê?
- Porque tem bigode e canta a canção do João e da Maria.
- É bonita, essa canção.
- Mas também gosto das canções da Floribela.
- Eu também gosto.
- Gosto do Chico Duarte e da Floribela.
(Sentada na bancada da cozinha, com um penteado de bailarina russa, cheio de ganchos, elásticos e tranças, teatraliza a cantiga do formiga no carreiro. Exige que a emite. Aos nossos pés, a Julieta boceja. Sou uma mãe estupidamente babada. Credo. Como vou passar um mês, inteirinho, sem os ver?)
2006/12/15
Ensopado de lulas
A minha sogra gosta de provocar os outros. Fá-lo com inteligência e intuição. Muitas vezes os outros não percebem que estão a ser provocados ou gozados. É uma qualidade que lhe aprecio. E invejo. Hoje teve o descaramento de me dizer, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que a Julieta, a minha Julieta, a Julieta que podia ter nascido do meu ventre, tal é a parecença no mau feitio, é uma cadela muito, muito feia. Horrível!, chegou a dizer. Olhei primeiro para a Fátima que me preparava o almoço, um fumegante ensopado de lulas. Procurei, em vão, consolo junto dela. Geralmente, a Fátima vem sempre em meu auxílio. Desta vez, sem se virar, disse apenas laconicamente que, se calhar, a feiura da Julieta se devia à mudança do pêlo. Fiquei abismada! Fitei de novo a minha sogra. Velha e congestionada, enrolada num xaile preto, pingando ranho aguado para cima de um prato de bróculos e frango estufado. É inteligente. É, porventura, das pessoas mais inteligentes que conheço, mas tomara ela ter metade da beleza da minha Jujuzinha.
2006/12/14
Sopa
Tem muito cuidado a servir as sopas. Enfia a concha na panela. Fá-la subir acima do prato. Depois inclina-a, despejando a sopa sem entornar uma única gota. Usa uma farda branca, com um grande avental de plástico, chinelos ortopédicos brancos e um quico na cabeça que lhe esconde os cabelos oleosos. Nunca fala com os colegas. Ignora os piropos da D. Fátima que, no balcão do peixe, apregoa carapaus à espanhola e pataniscas. Ignora também a tristeza que a Rosa traz do Cacém e derrama sobre as sobremesas plastificadas, assépticas, que ali repousam. Gelatinas de sabores vários, bavaroises de morango e ananás, bolo de chocolate, arroz doce. Ignora, sobretudo, a tirania da D. Conceição, a chefe do refeitório, solícita e educada apenas para os senhores e as senhoras que serve. Está sempre muito concentrado no que faz. Nos dias em que não está a servir as sopas vejo-o passar, apressado, com os tabuleiros de loiça suja ou lavada. Um sorriso tonto colado ao rosto. Um sorriso que se associa a desgraça, estupidez, imbecilidade, paralisia. Porque se ri ele, que se chama João? Porque se ri o João, o rapaz do refeitório, que não fala com ninguém e com quem ninguém fala, que se limita a servir sopas e carregar tabuleiros de loiça suja? Porventura porque vive e é feliz.
2006/12/13
Diogo Soares
2006/12/12
Varsóvia
Sonhei com Varsóvia. Um sonho de imagens e cheiros fortes. Não sou capaz de o contar, apesar de me lembrar de todos os detalhes e pormenores. Estou cansada. Triste, também. E não sei porquê. Que há em mim que me faça tão triste e só? Que bicho é este que hiberna dentro do meu corpo para, de tempos a tempos, despertar furioso? É um bicho mau. Abre chagas e sulcos. Espalha pedaços de desespero por todo o lado. Sou patética. Sei que o sou. Mas, enfim, hoje guardo Varsóvia, com rio e mar, e tinta vermelha escrita em papel de guardanapo, só para mim. A tinta, cor de sangue, ensopava-se no papel e distorcia as letras que, crescendo, pareciam fantasmas, árvores mortas. As minhas palavras tornavam-se ininteligíveis e eram sinal de loucura e alheamento.
2006/12/11
Fidel
Espero que quando o Fidel morrer, os que agora celebram a morte do Pinochet, e têm todo o direito a fazê-lo, saibam celebrar com igual entusiasmo a morte do cubano. O moribundo camarada, apesar da admiração senil e bolorenta que suscita em muitos, não lhe fica atrás. Aliás, desconfio que o ultrapassa. Admitamos, ao contrário do Pinochet, que, pelo menos, acabou por se submeter à vontade do seu povo entregando o poder a um presidente eleito, o Fidel jamais o fará. Mas, enfim, há ditadores e ditadores. E os ditadores de direita, a “malta” abomina. Já os ditadores de esquerda, a “malta” fecha os olhos e diz tal e coisa e a culpa é da América. Credo. Há tantos imbecis no mundo. Demasiados. Citando o meu sábio pai (cujas sovas nunca foram capazes de soterrar o amor que lhe tenho), deviam de ser todos fuzilados.
Pinochet
Morreu o Pinochet. As notícias anunciam os festejos da sua morte. Não rejubilo com a morte de ninguém. Os ditadores, em regra, não passam de seres patéticos que me suscitam mais pena do que ódio. Apesar de não festejar a sua morte, reconheço - claro que reconheço ! - que o general não fará cá falta nenhuma. Uma das primeiras sovas que levei do meu pai foi quando celebrei a vitória do não no plebiscito realizado no Chile. Foi há muitos anos, oitenta e oito ou oitenta e nove. Lembro-me de estar no quarto dos meus pais, encolhida a um canto, perto da janela, a levar tabefes. O meu pai espumava da boca. Batia-me, com fúria e desprezo, por causa do ditador sul-americano que acabara de ser afastado pelos chilenos. Insultava-me, chamando-me comunista e outras coisas que ainda gosta de me chamar. Lembro-me de desviar o olhar para uma fotografia pousada em cima da cómoda, em que a minha irmã, concentrada, escrevia num caderno de capa verde. Mais do que de atrocidades que fez ao seu povo, confesso, sempre guardei rancor grande e antigo ao General por causa do ódio que nessa tarde vi nos olhos do meu pai.
2006/12/07
2006/12/06
...ou não?
Porém, a possibilidade de uma mulher no futuro poder abortar até às dez semanas num hospital público, com a assistência médica devida, não me faz dar pulos de alegria. Até porque não resolverá a maior parte dos problemas. As adolescentes continuarão a foder cada vez mais novas com rapazes de brinco que têm pit-bulls e querem ser parecidos com o Cristiano Ronaldo. Continuarão, sozinhas, a ter os seus filhos, apavoradas por confessar a gravidez aos pais. As mulheres da Maia e as de Aveiro, que convenientemente (sobretudo os jornalistas) toda a gente esquece que abortaram depois das dez semanas, continuarão a ser julgadas porque a lei continuará a criminalizar quem o faça a partir dessa data. As senhoras da classe média e da classe média-alta, que têm dinheiro, não se submeterão a uma interrupção da gravidez num qualquer hospital público. Continuarão a ir às clínicas de Espanha e Inglaterra onde poderão abortar com comodidade e discrição. Mas a verdade é que há mulheres, muitas, que têm uma vida difícil, amachucada, sofrida. Não merecem sofrer mais. Seja impondo-lhes um filho que não desejam. Seja empurrando-as para um aborto clandestino. Seja com a condenação de uma sociedade que, em nada, as ajuda. É por estas mulheres, só por estas, que votarei sim. Porque se as que vão a Badajoz e a Londres têm liberdade de escolher ter ou não um filho e têm a possibilidade de o fazer em segurança, com todas as mesuras e cuidados, o Estado, o tal que se apregoa de Direito, tem de garantir o mesmo às demais, sob pena de inadmissível violação do princípio da igualdade.
Sim...
Agora há para aí uns blogs que têm umas coisas amarelas que piscam e dizem “Este blog vota sim”. Estão a falar do referendo de dia 11 de Fevereiro, já se está mesmo a ver. Nesta, como em outras matérias, não percebo aqueles que têm uma posição inabalável. Não compreendo, nem aceito, as senhoritas que se põem de barriga flácida à mostra a dizer aqui mando eu (mandam no quê?!) como se a possibilidade de abortar lhes conferisse algum tipo de dignidade ou valor. Assim como me agoniam as tias de madeixas loiras que, nasalando, dizem que o que é preciso é investir na educação das mulheres e no planeamento familiar. A gente olha para elas e está mesmo a vê-las a distribuir preservativos às ciganas da Quinta do Mocho e a ensinar as cabo-verdianas da Cova da Moura a tomar a pílula todos os dias. É um discurso demagógico. As políticas de planeamento familiar, por mais eficazes que sejam, não excluem gravidezes não desejadas. Confesso, a mim, é-me muito difícil tomar uma decisão nesta matéria. No anterior referendo votei não. Estava grávida do João e acho que essa gravidez, a primeira, especial ao ponto de me fazer renascer, condicionou o meu voto. Desta vez votarei sim.
2006/12/05
Rosa Maria (3)
O caldo entornou-se. Já nem sei o que lhe disse. Só sei que, às tantas, ela olhou para mim e, abrindo muito a boca, mostrou-me outra vez a dentadura. E, depois, sabe o que me disse, senhor doutor, disse-me que tinha uns dentes melhores que os meus e que os homens gostavam de dentes bons! Foi aí, senhor doutor, que eu lhe disse assim ó Rosa Maria, tu, se fizeres um broche a um homem com esses dentes, pões-lhe a pila logo mole! E desatei-me a rir porque comecei a imaginar a Rosa Maria, muito velha, cheia de rugas, muito torta, a fazer o trabalhinho e os dentes a chocalharem por todo o lado. Deu-me um ataque de riso que não consegui parar! A gente ri-se tão poucas vezes nesta vida que tem que aproveitar quando tem vontade. Quando olhei para a Rosa Maria vi que estava caída a tremer por todos os lados. E a dentadura caída no meio do chão. Qualquer coisa no coração. Um ataque fulminante! Quando chegou o 112 e a levou parece que já ia morta. Coitadinha. Não queria que a Rosa Maria morresse senhor doutor! Fico doente, com o coração apertadinho, só de pensar que ela morreu porque eu lhe disse que nem com a dentadura nova ela conseguia arranjar homens que lhe pagassem! Apanhei a dentadura, guardei-a bem guardadinha e tenho-a aqui, senhor doutor, tenho aqui a dentadura da Rosa Maria embrulhada num guardanapo limpinho. O senhor doutor, faz o favor de a guardar, bem guardadinha, porque a Rosa Maria tem de ser enterrada com a dentadura posta. Percebeu, agora, porque quis falar consigo? É para lhe entregar os dentes novos da Rosa Maria.
Rosa Maria (2)
Ora, hoje de manhã, fui beber um galão e comer um papo-seco ali a um café antes de ir trabalhar. Cheguei à esquina devia ser cinco horas. Adivinhe quem já estava? A Rosa Maria! Só que estava diferente. Os beiços pintados de vermelho, vermelho, vermelho! As unhas, muito ratadas, mas pintadas também. Tinha uma roupinha diferente. Sei lá onde a foi desencantar! Nalguma loja chinesa ou na feira da ladra. Estava encostada à minha esquina, com a mala a tiracolo, e sorria a quem passava. Quando sorria mostrava os dentes. Foi então que percebi que a Rosa Maria tinha uma dentadura. Ó senhor doutor, eu olhei para ela, a mostrar os dentes novos, pronta para o engate, e nem sabia se havia de rir ou chorar! Eu, muito calminha, muito calminha, perguntei-lhe ó Maria Gertrudes, pá, olha que estás na minha esquina! Ela olhou para o relógio e disse que tinha chegado primeiro. Eu calei-me e pus-me a falar para dentro, a dizer, tem calma Maria Alice, tem calma, que a gaja é velha e já andou muitos anos na vida e tu mais dia, menos dia, vais ser igual a ela, uma puta velha. Foi então que a Rosa Maria começou a falar, a dizer que já não se faziam mulheres como dantes, que nós éramos todas umas drógadas, que andávamos a dormir com os homens e a espalhar doenças por toda a parte. Comecei a chatear-me porque há muita desgraçada com o vício nesta vida, mas não é o meu caso, senhor doutor, que nunca meti nada dentro do corpo e tenho dois filhos para criar! Olhe, mas ela não se calava, uma conversa sem pés nem cabeça!
Rosa Maria (1)
Vou-lhe contar tudo o que se passou, senhor doutor. Ando na vida há muitos anos. Já passei por muitos lugares, mas, de há uns tempos para cá, que estou na esquina da Rua João das Regras, ali perto da Praça da Figueira. É o sítio onde sempre fico. Às vezes, quando chego, está lá a Rosa Maria, a tal velha que morreu. Foi puta toda a vida. Desculpe a linguagem, senhor doutor, mas a gente tem que chamar as coisas pelos nomes! Geralmente, quando a vejo na minha esquina, chego-me ao pé dela e digo-lhe Rosa Mara põe-te a andar que este é o meu sítio. Ela resmunga, resmunga. Não se percebe metade do que ela diz. Às vezes tenho que gritar com ela para a pôr a andar. Digo-lhe assim ó Rosa Maria, põe-te na alheta se não rebento com o resto dos dentes que tens na boca. Eu sei que não devia dizer uma coisa destas a uma velha. Mas que quer, senhor doutor, a Rosa Maria é teimosa. Por mais que a gente lhe diga que já não há homens que a queiram, assim, velha, malcheirosa, desdentada, ela insiste em sair todos os dias para a rua à procura de clientes. Foram muitos anos na vida, foi o que foi. Tadinha. Deus a tenha em descanso, que bem merece!
2006/12/04
2006/12/03
2006/11/30
Cretone Picasso
O motorista, pequenote, de bigode farto, falou-me do cretone picasso, padrão muito na moda nos anos cinquenta. Os reposteiros de todas as casas lisboetas eram forradas a cretone picasso, assegurou-me. Depois, cantou o cu, cu, cu, cu, ru, paloma. Eu, no fim de ele se calar, a dizer-lhe que só conhecia aquela canção cantada pelo Caetano Veloso. Ele a dizer qual Caetano Veloso, qual carapuça, menina, esta canção é do Pedro Henrique, do Pedro Henrique que era uma vedeta do cinema mexicano! Depois cantou outra canção. Quando cheguei ao meu destino, despedi-me, entregando-lhe uma nota que me pareceu suja, menor, indigna. Deixei o taxista mariachi seguir, rodar pela cidade dos bairros, dos jardins, dos velhos que alimentam pombos e jogam às cartas, a cidade das gargalhadas nos meninos de panamá e da prostituta loira que paira na esquina de uma rua da baixa, uma rua cujo nome não recordo, mas que sempre prende o meu olhar. Invejei, naquele momento, todos as mulheres que, depois de mim, entrariam no carro do taxista mariachi e para as quais ele cantaria. Fiquei parada no meio da rua a pensar em cretone picasso e no tal Pedro Henrique. Nem percebi que o sol, tão bonito, esmaecia sobre as paredes dos prédios de Campo de Ourique.
P-U-T-A
O João entra no quarto da irmã com o dicionário na mão. “A Julieta comeu a capa do meu dicionário!” Olho horrorizada para as suas mãos. “Mãe, sabes que o dicionário tem asneiras?” diz enquanto me entrega o livro para as mãos e trepa para a cama da Madalena. Indigno-me. “Tem, tem!”, insiste o menino maravilha. “Vai lá ao f e procura filho da p-u-t-a.” Procuro. Lá está. Filho da puta, escarrapachado, escrito com todas as letras no dicionário do meu filho. Ele cabriola. Ri-se às gargalhadas perante a minha estupefacção. A irmã aos gritos, já lacrimosa, pergunta-me o que é um filho da puta. Mal adormecem, corro a resgatar o dicionário. Investigo. O dicionário da porto editora, o pequenino, azul, o tal que no meu tempo apenas tinha a palavra cabrão (definida como bode grande), tem, pelo menos, as seguintes palavras: merda, filho da puta, cona, caralho, cabrão, foda-se, fodido e foder. Verdade, verdadinha. Ao olhar o dicionário do João, meio comido pela Juju, a cadela comedora de palavras, percebo que os miúdos de hoje não podiam ser muito diferentes do que são: descarados. Tem piada enquanto têm 8, 9, 10 anos. Aos 15, 16, 17 deixam de ser descarados para se tornarem simplesmente ordinários. Agora há coisas que não entendo: Porque é que cona e caralho estão no dicionário e colhão não? Não está. Procurei e não estava.
2006/11/29
You like me!
Chegando o ano ao fim começam as eleições na blogosfera. Com categorias infindáveis e ar de coisa séria. O que mais irrita nesta palhaçada –, afirmo-o, porventura, de forma injusta - são os agradecimentos dos nomeados. Cada vez que dou de caras com um tipo a agradecer uma nomeação lembro-me da medíocre Sally Field quando ganhou o óscar de melhor actriz. Chorando, com aquele rosto muito redondinho de americana boazinha, a ranhoca a pingar da narigona, as mãos cruzadas sobre o peito, soluçava qualquer coisa do género “Now, I know you like me!”. E repetia aquilo até à exaustão. Foi preciso arrancá-la do palco. Aquela cena deplorável marcou-me para a vida. Ora, os escrevinhadores de blogs que agradecem nomeações são assim como a sally feild: bué da patéticos. (Sei que bué não é vocábulo indicado para quem, como eu, tem a assumida pretensão de bem escrever. Mas os meus filhos usam bué a palavra bué. Gosto bué de os ouvir dizer bué. Com eles aprendi a gostar de tal palavra. É gira. Só que os miúdos não gostam de ma ouvir. Irritam-se e dizem que sou bué da velha para a usar. Resta-me, por isso, escrevê-la.)
2006/11/28
Patchouli
Entro na loja para comprar meias. É uma daquelas lojas chinesas que, como pragas de insectos, invadiram as cidades e as vilas. Um cheiro enjoativo, a patchouli, paira no ar. Atrás do balcão uma brasileira, com a cara marcada de bexigas, olha para as unhas. Tem umas unhas de gel. Umas garras enormes, pesadas, rectangulares, pintadas com brilhantezinhos prateados. Tem a abóbada celeste, vista da Brandoa ou de Camarate, nas unhas. A pavorosa imobilidade do cabelo liso mostra que foi, há pouco, desfrisado. Pergunto-lhe onde estão as meias. Aponta-me para um escaparate que está ali perto e continua a olhar para as unhas. Procuro meias de licra, as mais baratas. Quero aquelas do pacotinho azul que custam só 1 euro cada. Vou espiando a brasileira do balcão. Entre quinquilharia vária, bijuteria barata, colares, braceletes, piercings, brincos, grandes, pequenos, continua estática, olhando as mãos. Finjo escolher elásticos para o cabelo. Aproximo-me do balcão. Percebo então que a brasileira está assim, imóvel, concentrada, por estar a escutar rádio. É uma daquelas rádios religiosas. Uma voz, com sotaque indefinido, fala do diabo e de uma igreja em Camarate. Depois anuncia uma lição do apóstolo Jorge Tadeu sobre autoridade e submissão. O tal apóstolo Jorge Tadeu, na sua lição, volta a falar do diabo. Diz que o diabo é o maior crente. Ui, que medo! Escolho dois elásticos pretos e peço à brasileira a minha conta. Ela desperta do seu torpor com um “oi?”. Pago-lhe e deixo-a em paz, quieta, a ouvir falar de deus e do diabo. Ao sair da loja levo as mãos ao nariz. Tresandam a patchouli. Percebo então que o diabo não cheira a enxofre. Cheira a patchouli e anda a monte.
2006/11/27
Arrepio
Depois de um período de nojo, o Pedro Santana Lopes voltou. Era esperado, e querido, o seu regresso. A verdade é que, desde os que o idolatram (que os há) até aos que o desprezam, o país não conseguia passar sem ele. Goste-se ou não, um facto é inegável: o Pedro Santana Lopes dá à nossa vida política uma vivacidade que mais nenhum político é capaz de dar. Segunda-feira, ele fala na TSF. Ouvi-lo pela manhã, muito cedo, disfarçando a voz de bagaço que a noite lhe trouxe, comentar acintosamente, cinicamente os seus pares utilizando frases cheiinhas de adjectivos assertivos – inconcebível, inadmissível – é maravilhoso. Até dá arrepios. Eu desperto logo para a vida.
Cesariny
Não fossem semi analfabetos, pouco dados à leitura de jornais (ela gosta mais da caras e ele tem um quarto com uma playstation onde vive virtualmente dentro dos jogos) e os primos já teriam rejubilado com a morte do Cesariny. Agora, o horrível quadro amarelo que têm pendurado na parede da sala vai valorizar ainda mais. Upa. Upa. É tão fino investir em arte.
2006/11/24
A1
Sentia o trepidar do carro cada vez que um camião passava. E a chuva era assim como a de hoje. Indomável, baça, furiosa. Sentada no carro, contava os minutos no relógio. Comi uma barra de chocolate que se desfez e deixou nódoas esboroadas na saia de fazenda castanha. Os camiões lá fora continuaram a passar como elefantes durante muito tempo. Perguntava-me a mim própria como pudera o pneu rebentar, assim, num final de tarde de Inverno, no meio de uma tempestade, na auto-estrada do norte, longe de tudo, de todos, com a chuva a fustigar por todos os lados. Vi-me só e a solidão, pela primeira vez na minha vida, assim tão concreta, com corpo de chuva, assustou-me. Até que olhei pelo espelho retrovisor e te vi. Risonho como um animal manso, enfiado numa gabardina verde. Naquele instante, naquele preciso instante, gostei tanto de ti.
2006/11/23
2006/11/22
Compal
Às vezes uma pessoa não se pode calar. Deve chamar a atenção para os disparates que se fazem e se dizem. Assim sendo: o compal de manga não tem direito a integrar a categoria dos clássicos. Nesta categoria só podem estar, como estão, o compal de pêra, o compal de alperce e o compal de pêssego. Também poderia estar o compal de tuti-fruti. Não está porque, é sabido, o tuti-fruti é sabor fora de moda. O que está na moda agora são os sumos de frutos vermelhos e de maça bravo esmolfe. Adiante. O compal de manga, reafirmo, não é clássico. Não me lembro de o beber em miúda. É óbvio que devia estar na categoria dos compais fresh.
Castanheira do Ribatejo
No rádio do carro, enquanto fixo as olheiras no espelho retrovisor, ouço um excerto de uma conversa qualquer entre o Eduardo Lourenço e o Pedro Mexia. Falam de literatura, do Vitorino Nemésio, do Camilo e do Eça. O Pedro Mexia é um chato armado em não chato, penso, enquanto ele afirma, assertivo, que o Camilo é maior do que o Eça. Não aguento ouvi-lo. Não teve sorte nenhuma com a voz que Deus lhe deu. É uma voz aborrecida que cicia bolores e outras coisas húmidas. Desligo o rádio e saio para a estação apesar do meu comboio, o que vem de Castanheira do Ribatejo, ainda tardar. Fico sem perceber porque é o Camilo maior que o Eça. Não faz mal. Há tantas coisas que eu não percebo.
2006/11/21
Senhor dos Paços
Mal entrei a Rafaela, que colocou uma banda gástrica, e suspira amiúde, disse que adorava a cor da minha camisola. Adoro, doutora, adoro, adoro, adoro! Essa cor faz-me lembrar o Senhor dos Paços! disse efusiva. Ena, pensei eu, o Senhor dos Paços! Depois, do seu canto, cheio de vasos de violetas e cartões com ursinhos, florzinhas e outras coisas fofinhas, pestanejou, arremelgando-me uns olhos pintados de verde marinho. Não conhecesse eu a sua história, que mete uma filha de dez anos, infidelidades nortenhas, uma separação e uma reconciliação com um corno manso, e juraria que a Rafaela se estava a meter comigo. Só um bocadinho. Um bocadinho de nada. Pode meter-se à vontade. Não faz nada o meu tipo. É mastodôntica. Eu, se gostasse de mulheres, apreciá-las-ia pequeninas, assim como às sardinhas.
2006/11/20
Maria José
A catequista do João chama-se Maria José. É um nome insuportavelmente óbvio para uma catequista. Podia chamar-se Salomé, Betsabé, Rute, qualquer coisa assim. Deslavada, usa o cabelo pegado à cabeça e tem sempre, como é próprio da sua idade, meia dúzia de borbulhas a sarapintar-lhe o rosto. Cada vez que me fala perscruta em mim uma pecadora, uma ímpia, uma descrente. Fala-me com calma, cerrando os olhos lentamente, num langor de piedade que me agonia. Coitada da Maria José, tão cheia de fé, tão paciente, solícita, instruindo as criaturinhas pequenas para a primeira comunhão, ensinando-lhes o perdão, o pai-nosso, as aves-marias, a confissão, o arrependimento. Coitada de mim que fico com vontade de a vergastar, insultar, ofender para a fazer perder a postura seráfica de virgem num altar.
2006/11/19
Leontina
"Já contei esta história tantas vezes e ninguém quis me acreditar. Vou agora contar tudo especialmente pra senhora que se não pode ajudar pelo menos não fica me atormentando como fazem os outros. É que eu não sou mesmo essa uma que toda gente diz. O jornal me chama de assassina ladrona e tem um que até deu o meu retrato dizendo que eu era a Messalina da boca-do-lixo. Perguntei pro seu Armando o que era Messalina e ele respondeu que essa foi uma mulher muito à-toa. E meus olhos que já não têm lágrimas de tanto que tenho chorado ainda choraram mais".
Lygia Fagundes Telles, 1978
Lygia Fagundes Telles, 1978
2006/11/17
Amadora
Volto a encontrar a anã das rifas. Na estação de comboios. Já não anda a fazer de coitadinha. Desenvolta, mancando, com uns sapatos de sola grossa que lhe dão mais meia dúzia de centímetros, caminha na minha direcção. Fuma uma cigarrada. O olhar já não é de comiseração. Não pede piedade, nem esmola. Passa junto a mim. Fala sozinha. A voz também não é igual. É uma voz demoníaca, malévola, de gnomo mau. Ri-se em ih, ih, ih, em vez de ah, ah, ah. Esta anã, imagino, deve ser dada a magias negras, a vícios, a cambalachos, expedientes vários. Se calhar é, até, o fetiche sexual de alguém. Já estou a vê-la a gastar o dinheiro das rifas para comprar chicotes e fatos de cabedal. Volto a olhá-la. Atira com a beata para o chão e, muito tortinha, tal qual um caranguejinho perneta, entra no comboio que vai para a Amadora.
2006/11/16
Amarelo-torrado
Sempre quis ter um vestido amarelo-torrado. Há anos que procuro um vestido dessa cor. O amarelo-torrado é paixão de infância. Há dias vi um numa montra de água e noite. Vou ter de o comprar. É superior às minhas forças. Ainda por cima é barato. Mas tenho uma dúvida. Que tipo de sapatos vou usar com um vestido amarelo-torrado?
(Eu sei que tamanha frivolidade deveria ser evitada hoje, dia mundial da tolerância. Fosse eu uma blogger consciente, a sério, e colocaria hoje aqui uma foto do Nelson Mandela ou então alardeava aos quatro ventos a conferência que vai ter lugar no IPJ com um tipo marroquino que se debruça sobre estas questões. Mas não sou uma blogger responsável e consciente. Como toda a gente, ou quase toda a gente, estou-me a borrifar para a miséria dos outros povos. O que eu quero, com urgência e sofreguidão, num mundo de desigualdades e injustiça, é um vestido amarelo-torrado que satisfaça os meus caprichos de infância.)
2006/11/15
Hipólita
Gostava que a Hillary Clinton fosse presidente dos EUA (sê-lo-á?). Gostava que a Ségolène Royal ganhasse em França. Gostava que a Manuela Ferreira Leite fosse primeira-ministra de Portugal. Gostava que a Maria José Nogueira Pinto fosse presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Gostava, muito, que, daqui a uns anos, a Leonor Beleza fosse presidente da República. Assim, de repente - eu sei - parece que sou uma tipa de direita, conservadora e imbecil, como são quase todos os conservadores que conheço. Não sou. Sei lá o que sou. Sou do centro, desse centro indefinido e angustiado, que não se revê em partidos e ideologias, que vagabundeia num limbo partidário. Só nas ditas questões fracturantes estou assumidamente à esquerda. Apoio o casamento e a adopção por casais homossexuais, a liberalização das drogas leves, a despenalização da ivg, o incremento dos direitos dos imigrantes, o fim das touradas, as salas de chuto. Enfim, essas causas todas que a esquerda reclama como suas. Porém, olhando para as mulheres da dita esquerda não descubro uma única que me mereça grande admiração. É triste. Mas é verdade. Desde a laca da Maria de Belém, à demência notória da Odete Santos, ao anti-americanismo primário da Ana Gomes, à arrogância infundada das meninas do bloco, como a Joana Amaral Dias (só se a arrogância lhe vier das mamas, que as tem grandes), à estalinista europeizada Ilda Figueiredo, todas me fazem torcer o nariz. Não gosto delas. Estou à espera de uma Hipólita que, com o coração à esquerda e a razão à direita, tal qual a guerreira amazona, galvanize as mulheres para a tomada do poder e corra com a corja que por lá anda.
2006/11/14
Serão
Ontem, ao serão, fizemos um bolo de mel polaco. Não é para qualquer um. Depois, enquanto o bolo cozia, ele foi ver o restelingue (como eu gosto de aportuguesar as detestáveis palavras anglófonas que nos invadem os dias) e eu fiquei com a irmã na cozinha a jogar às cartas. Gritou com o Ray Misterioso e outros mascarados que, assustadores, cabriolam em lutas encenadas dentro de um ringue. Às nove e meia mandei-o para a cama. Refilou. És má, e continuou a dar golpes, murros e socos. Está sempre a falar de um golpe qualquer chamado choque slam. Já vestidos de pijama e enfiados na cama da Madalena, sugeri a leitura da Menina do Mar. Não, que não tem ilustrações!, foi a resposta imediata, e esperada, que me deu. Ignorei-o. Enquanto li a história, o desgraçado do miúdo deitou-se e, de olhos fechados, virou-se para o lado. Julguei-o adormecido, imune à escrita tão bonita e simples da poetisa. Imaginei-o para sempre perdido, um adolescente mentecapto, sempre a falar de bola e de play stations, a gritar yas, bués, fixes, a galar miúdas burras, com um corte de cabelo absurdo. Na vigésima quinta página, interrompi a história e disse-lhes que o resto ficava para amanhã, que é como quem diz, para hoje. Ele levantou a cabeça e protestou. Franziu-me o sobrolho, olhou-me de viés, pegou no livro e esparramou-se na cama dele, de rabo para cima, a lê-lo. Foi a primeiro vez que o João levou um livro para ler na cama. No seu quarto, a Madalena imitou as danças de arabescos da Menina do Mar e exigiu, depois, que eu cantasse à cigana, esganiçadamente, com palminhas e muitos ais prolongados à mistura. (Curto bué os meus filhos).
2006/11/13
Gomorra
O horror que tenho a tais cuecas já me tem causado chatices na vida. Por exemplo, este fim-de-semana, estava com os miúdos, na fila dos frangos assados na churrasqueira onde os compro desde sempre. Às tantas, a rapariga que vende os frangos, virou-se para voltar o espeto. Foi então que tive a visão de um rabo imenso, enfiado numas calças baratas de cintura descaída. Por cima , vislumbrei o triângulo de umas cuecas fio dental cor de carne, com o rebordo de renda vermelha, muito encardidas e, certamente, malcheirosas. Fiquei agoniada. Virei costas e já não comprei frango nenhum. Fomos comer uma piza para gáudio da prole. Já tive de mudar várias vezes de lugar no comboio para não estar a olhar para um cu agrilhoado num fio dental. Mas o pior é o caso da minha irmã (desculpa lá falar no assunto). Grávida, prestes a rebentar, usa fio dental. Acho obsceno que uma mulher grávida use fio dental, principalmente se essa mulher for minha irmã e futura progenitora do menino dos meus olhos. Temo, juro que temo, pela personalidade do meu sobrinho. Ela não sabe, pobre coitada, mas a relação dela com o filho, pode estar seriamente comprometida pelo uso de tão inestético acessório. Enfim, para abreviar, que o assunto não merece maior delonga: com excepção da minha irmã, acho que as mulheres que usam fio dental haviam de ser todas colocadas no Campo Pequeno, despidinhas, só de tanga enfiada no cu, e, depois, tal qual como aconteceu nas bíblicas cidades de Sodoma e Gomorra, havia de haver alguém que as castigasse forte e feio por tanta depravação e mau gosto.
Sodoma
Resfolegando, entro no balneário. Lá está ela. Velha, para aí cinquenta anos, de cuecas e sutian, carnes flácidas, chinelo enfiado do pé, em frente ao espelho, a secar vagarosamente o cabelo. Usa um fio dental. Aliás, usa sempre umas cuecas fio dental enfiadas no rego do rabo. Hoje, para variar, as cuecas são pretas e têm uma coroa com brilhantezinhos à frente. A tipa está, de certa maneira, a coroar a sua própria vagina. Coisa linda. Odeio cuecas fio dental. Não percebo como é que há mulheres que as usam. O fio dental é a coisa mais ordinária que existe. Só as sopeiras, sejam elas de Massamá, da Cova da Moura, do Alto do Alagoal, ou dos lofts de Alcântara, é que usam fio dental. No balneário, no meu balneário, frequentado essencialmente por informáticas, juristas, economistas, gestoras de conta, administrativas, secretárias, bancárias em geral, são mais que às mães. Gordas, magras, velhas, novas, celulíticas, tudo exibe, num espectáculo de horripilante mau gosto, as nalgas, as nádegas, as bochechas do rabo. Andam naqueles preparos, de cá para lá, sentindo-se sexis, sensuais, boazonas, apetecíveis, preparadas, preparadíssimas para a qualquer momento serem tomadas de assalto e furiosamente fodidas. Tão parvinhas. Umas sodomitas frustradas. Credo.
2006/11/10
Eva
Entra uma rapariga na carruagem. Olho-a. Tem umas sandálias cremes calçadas, tipo colibri, de plástico bege, daquelas baratas que se compram no Paraíso do Calçado e cheiram mal quando se descalçam. Morena, com umas covas nos olhos e a sombra do buço a marcar-lhe o rosto, a rapariga não terá mais de 20 anos. O cabelo é enorme, escuro, exageradamente comprido. Deve chegar-lhe ao rabo. Faz lembrar uma Eva ignota. Vê-se que tem orgulho no seu cabelo. Não pára de lhe mexer. Faz nós nas pontas. Pouco depois, desmancha-os para logo de seguida fazer outros. Quando se cansa dos nós, começa a enrolar o cabelo em volta do pescoço. Como se fosse um lenço. Ou um colar. Ou uma corda para se enforcar. Ou uma serpente de língua bífida que, sibilante, lhe oferece uma maçã. Por fim, deixa de brincar com o cabelo e arremessa-o para trás das costas. Olha em redor e dá um estalido com a pastilha elástica que mastiga. Tem noção de que o seu cabelo dá nas vistas e isso alegra-a. O que a rapariga não percebe é que é a feiura do seu cabelo-serpente que prende o olhar de quem com ela se cruza. É um cabelo baço, sem brilho, sem volume, com uma ondulação incipiente. Tenho pena da Eva que masca pastilha elástica na carruagem do metro que vai para Odivelas. Se tivesse uma tesoura à mão cortava-lhe o cabelo, tornava-a banal, livrava-a dos olhares alheios.
Parole
Ando com vontade de me calar. De vez. Cada vez que me leio dou conta da imbecilidade, da fragilidade do que aqui escrevo. Escrevo como se me flagelasse. Armo-me noutra que não eu. Quero impor-me um estilo virulento, desbragado, agressivo. E, no entanto, quase sempre, as minhas palavras não passam de palavras trôpegas, tantas vezes pretensiosas e risíveis. Detesto-as. Detesto-as verdadeiramente. Às vezes, como esta noite, sonho com palavras. Palavrazs escritas. Essas sim. São perfeitas. Por uma razão simples. Não existem.
2006/11/08
Maria Eugénia (2)
Quando chegaram a casa tinha as pernas feridas como se tivesse sofrido leves queimaduras. O marido assustou-se e desde esse episódio condescendera àquela paixão doméstica de Maria Eugénia e passara a trazer-lhe, das suas viagens, tecidos caros. Maria Eugénia passava tardes a fio a costurar. Fazia a sua roupa e também a que os seus filhos usaram até à altura em que começaram a exigir vestir-se, com os restantes colegas de escola, nas lojas de pronto-a-vestir. Queriam calças levis e camisolas beneton, muito coloridas e garridas. Um homem, novo, entra na sala. Vem espavorido como se fugisse de alguma coisa ou de alguém. Pede-lhe desculpa pelo atraso e apresenta-se. O meu nome é Baltazar Abelha, e esboça-lhe um sorriso. Traz umas calças coçadas, muito velhas e gastas. Senta-se em frente de Maria Eugénia que impávida o observa e aguarda. Abre uma capa de cartolina e começa.
Maria Eugénia (3)
- Como se chama?
- Maria Eugénia Almeida Valadares.
- Onde reside?
- Na rua Elias Garcia, nº 28, 3º.
- Quantos anos tem?
- Sessenta e dois.
- Qual a sua profissão?
- Não tenho profissão.
- Diga-me, então, Maria Eugénia, o que aconteceu?
- Matei o meu marido.
- Houve alguma discussão?
- Não.
- Como o fez?
- Com uma faca de cozinha. Espetei-lhe a faca.
- Porque o fez?
- Porque ele me abrigava a fazer coisas que eu já não era capaz de fazer.
- Como por exemplo?
- Prefiro não lhe responder.
- O que é que fez depois?
- Depois?
- Sim, depois de matar o seu marido?
- Lavei as mãos, penteei-me, saí para a rua, passei pela igreja, onde me confessei, e vim para aqui.
- Não fez nada ao corpo?
- Não.
- E não telefonou a ninguém?
- Também não.
- Já mandámos dois homens a sua casa e sabe que mais?
- Não.
- Não encontrámos corpo nenhum, nem qualquer outro vestígio de ali ter sido morto alguém.
- É estranho.
- Porquê?
- Porque o Alberto gritou bastante quando lhe dei a primeira facada. Tive que lhe espetar a faca várias vezes até que se calasse.
- Maria Eugénia Almeida Valadares.
- Onde reside?
- Na rua Elias Garcia, nº 28, 3º.
- Quantos anos tem?
- Sessenta e dois.
- Qual a sua profissão?
- Não tenho profissão.
- Diga-me, então, Maria Eugénia, o que aconteceu?
- Matei o meu marido.
- Houve alguma discussão?
- Não.
- Como o fez?
- Com uma faca de cozinha. Espetei-lhe a faca.
- Porque o fez?
- Porque ele me abrigava a fazer coisas que eu já não era capaz de fazer.
- Como por exemplo?
- Prefiro não lhe responder.
- O que é que fez depois?
- Depois?
- Sim, depois de matar o seu marido?
- Lavei as mãos, penteei-me, saí para a rua, passei pela igreja, onde me confessei, e vim para aqui.
- Não fez nada ao corpo?
- Não.
- E não telefonou a ninguém?
- Também não.
- Já mandámos dois homens a sua casa e sabe que mais?
- Não.
- Não encontrámos corpo nenhum, nem qualquer outro vestígio de ali ter sido morto alguém.
- É estranho.
- Porquê?
- Porque o Alberto gritou bastante quando lhe dei a primeira facada. Tive que lhe espetar a faca várias vezes até que se calasse.
2006/11/07
Maria Eugénia (1)
Maria Eugénia tamborila com os dedos no tampo marmóreo da mesa. A sala está mal iluminada e uma humidade branda transpira das paredes. Aqui e ali topam-se manchas pequenas de bolor. Terá perto dos sessenta anos. Uma camisa clara mostra um colo branco e macio enfeitado com colar de pérolas que usa rente ao pescoço. Tem as mãos arranjadas e as unhas pintadas de um rosa esmaecido, muito claro, que faz lembrar coisas antigas. O seu porte mostra uma austeridade própria de quem tem tudo. Só os ricos se podem dar ao luxo de ser austeros. É sabido. Maria Eugénia aguarda não sabe muito bem o quê ou quem. Alisa o pregueado da saia com as mãos. Sente a maciez do tecido, uma lã cinzenta, com arabescos de flor-de-lis, que o marido lhe trouxe de uma das suas últimas viagens a Itália. Ao princípio, quando se casaram, o marido desdenhara-lhe o hábito da costura. Como mulher de um advogado, queria vê-la vestida nas lojas do chiado, chique como as mulheres dos seus colegas e sócios. Comprava-lhe vestidos, saias, casaquinhos. Para o agradar Maria Eugénia guardava os presentes no roupeiro e ocasionalmente soltava um É lindo, Alberto! Porém, a primeira vez que usara uma saia oferecida pelo marido, sentira-se estranha como se aquela não fosse a sua pele. Quando chegaram a casa tinha as pernas feridas como se tivesse sofrido leves queimaduras.
Lady Lazarus
Dying
Is an art,
like everything else,
I do it exceptionally well.
(...)
Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.
Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.
Sylvia Plath
Is an art,
like everything else,
I do it exceptionally well.
(...)
Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.
Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.
Sylvia Plath
2006/11/03
Imigrantes
Um relatório qualquer da OCDE, divulgado ontem, concluiu que o fluxo imigratório diminuiu forte e feio em Portugal nos últimos anos. É uma tristeza. Nem os imigrantes nos querem. Humilhação maior para um país é quase impossível. Quando nem sequer os imigrantes consideram um país como lugar de esperança é sinal de que esse país está moribundo. É já só uma carcaça podre que será debicada pelos abutres, vestidos de fato e gravata, e outras aves necrófilas. Uma das poucas saídas para Portugal é a imigração. Ter ao dispor gente que quer trabalhar é oportunidade que não se pode desperdiçar. É que os que cá estão preferem viver do subsídio de desemprego e de outros apoios idênticos que o estado social criou. Aliás, uma das razões para o sucesso da economia de Espanha consistiu precisamente mas vagas imigratórias que o país teve nos anos noventa e soube aproveitar. A imigração traz problemas. Traz mal-estar social, traz o confronto com o outro, tantas vezes difícil e truculento. Mas traz mais vantagens do que desvantagens. Não tenho quaisquer dúvidas sobre isso. Um país é tanto maior quanto maior for a sua abertura aos outros. Os EUA, quer se goste ou não (e eu gosto), continua a ser disso um exemplo maior. A nós, já ninguém quer. Nem os imigrantes. Estamos tramados.
2006/11/02
Una Giornata Particolare
2006/10/31
Salmos
Ontem, no debate sobre a interrupção voluntária da gravidez, ao lado da Zita Seabra, estava sentado o meu ginecologista - dei um grito quando o descobri, tamanho, que até assustou a Julieta -, com um discurso cheio de ardis e falácias, muita demagogia à mistura, a falar das pobres, das instituições que ajudam as grávidas pobres, que é preciso ajudar as pobres a ter condições para terem os seus filhos, dar-lhes apoio, dar-lhes um berço, dar-lhes amor e carinho. Ai, as pobres, as pobres…Da próxima vez que for a uma consulta e abrir as pernas para ele me inspeccionar o interior com a luvinha de latex, não me espantarei que, em surdina, cante litanias, salmos e ladainhas.
2006/10/30
Ode à Bicha Solitária (3)
Não valerá a pena vos explicar
Que foi paixão à primeira vista.
A Lénia mandou a solidão às ortigas
E correu que nem terrorista-bombista.
Pela braguilha do garboso guarda entrou.
Roçou-lhe os colhões que eram jeitosos
Por fim, lá encontrou o buraquinho do cu
E encontrou os intestinos mal cheirosos.
Era uma casinha muito mais modesta,
Nem sinal das iguarias do imperial intestino,
Não havia restos de sushi nem de sashimi.
Só sopinhas de miso, pão duro e pepino.
Uma casinha modesta, pois então,
mas tão linda, mal cheirosa e catita,
Que a ténia Lénia gritou esganiçada
“Não há no mundo mais feliz parasita!”
Contam que o tal guarda imperial
Quando sente a ténia Lénia mexendo
Suspira e impa em êxtase profundo
Pensa estar, com uma gueixa, fodendo.
Vitória, vitória, acabou-se a história!
(Minha doce Ténia, tantos anos volvidos, peço desculpas por te ter mandado para o caralho - coisa feia, não se faz !- oferecendo-te em homenagem estas singelas palavras.)
Que foi paixão à primeira vista.
A Lénia mandou a solidão às ortigas
E correu que nem terrorista-bombista.
Pela braguilha do garboso guarda entrou.
Roçou-lhe os colhões que eram jeitosos
Por fim, lá encontrou o buraquinho do cu
E encontrou os intestinos mal cheirosos.
Era uma casinha muito mais modesta,
Nem sinal das iguarias do imperial intestino,
Não havia restos de sushi nem de sashimi.
Só sopinhas de miso, pão duro e pepino.
Uma casinha modesta, pois então,
mas tão linda, mal cheirosa e catita,
Que a ténia Lénia gritou esganiçada
“Não há no mundo mais feliz parasita!”
Contam que o tal guarda imperial
Quando sente a ténia Lénia mexendo
Suspira e impa em êxtase profundo
Pensa estar, com uma gueixa, fodendo.
Vitória, vitória, acabou-se a história!
(Minha doce Ténia, tantos anos volvidos, peço desculpas por te ter mandado para o caralho - coisa feia, não se faz !- oferecendo-te em homenagem estas singelas palavras.)
Ode à Bicha Solitária (2)
Ora, um dia estava o imperador
Na sua magnífica retrete a cagar
Quando começou a doer-lhe a barriga
Como se tivesse o rabo a rebentar.
O imperador, irado, começou a bufar
Tentava expulsar a bichinha solitária
E entre peidos e esguichos de merda,
Fazia uma força mega-extraordinária
O imperador fez força, muita força,
E com lívidos esgares de sofrimento
Conseguiu com esforço expulsar a bicha
E, assim, pôr fim ao seu padecimento.
Assim que se viu cá fora a bichinha
Olhou em seu redor e viu, espantada,
Um guarda imperial, mui formoso,
que, sério, guardava a imperial cagada.
Era lindo, lindo, lindo, lindo, lindo!
Tinha ar, não sei, de doce cagalhão
Daqueles, muito compridos e grossos,
Que temos depois de grave obstipação.
Na sua magnífica retrete a cagar
Quando começou a doer-lhe a barriga
Como se tivesse o rabo a rebentar.
O imperador, irado, começou a bufar
Tentava expulsar a bichinha solitária
E entre peidos e esguichos de merda,
Fazia uma força mega-extraordinária
O imperador fez força, muita força,
E com lívidos esgares de sofrimento
Conseguiu com esforço expulsar a bicha
E, assim, pôr fim ao seu padecimento.
Assim que se viu cá fora a bichinha
Olhou em seu redor e viu, espantada,
Um guarda imperial, mui formoso,
que, sério, guardava a imperial cagada.
Era lindo, lindo, lindo, lindo, lindo!
Tinha ar, não sei, de doce cagalhão
Daqueles, muito compridos e grossos,
Que temos depois de grave obstipação.
Ode à Bicha Solitária (1)
No comprido intestino delgado
De um velho imperador japonês
Vivia, triste, uma pequena ténia,
Que chorava que nem um albanês.
Chamava-se Lénia, o pobre verme,
Nome pedante e estrangeirado,
Que em convívios, festas e bailes
Era quase sempre muito gozado.
Vivia a pobre Lénia tão sozinha,
Sem uma alminha com que falar.
Lamuriava-se nos intestinais corredores
Com o peito – ai, ai!- sempre a soluçar.
Para se alimentar a pobre coitada
Comia restinhos de sushi e sashimi
E, durante os dias, para se distrair,
Fazia tricô e figurinhas de oragami.
As mãos da Lénia eram canhestras
Muito pouco dadas a habilidades
E, por isso, as orientais figurinhas
Saiam-lhe sem qualquer graciosidade.
De um velho imperador japonês
Vivia, triste, uma pequena ténia,
Que chorava que nem um albanês.
Chamava-se Lénia, o pobre verme,
Nome pedante e estrangeirado,
Que em convívios, festas e bailes
Era quase sempre muito gozado.
Vivia a pobre Lénia tão sozinha,
Sem uma alminha com que falar.
Lamuriava-se nos intestinais corredores
Com o peito – ai, ai!- sempre a soluçar.
Para se alimentar a pobre coitada
Comia restinhos de sushi e sashimi
E, durante os dias, para se distrair,
Fazia tricô e figurinhas de oragami.
As mãos da Lénia eram canhestras
Muito pouco dadas a habilidades
E, por isso, as orientais figurinhas
Saiam-lhe sem qualquer graciosidade.
2006/10/29
2006/10/27
Felicidade (2)
A verdade é que cada vez que morre uma das vizinhas da minha avó é ela, a minha avó Felicidade, que me volta a morrer. É o Alentejo que morre. O Alentejo dos grilos, das histórias e das cantigas, do jogo do jangro, das mulheres de lenço à cabeça, das beldroegas, das melancias comidas quentes por nós na sombra do sobreiro solitário que anuncia o moinho. Chegará um dia em que a aldeia se esvaziará das velhas e das quase-velhas. Ficarão apenas as novas e as quase-novas. As que chamam Micaelas, Fabianas e Brunas Sofias às filhas. Que desdenham os nomes das mães e das avós. Felizarda. Piedade. Liberdade. Virtuosa. Preciosa. Que se vestem de poliester nas lojas chinesas que tomaram conta da vila. Que, nas noites de verão, já não se sentam em cadeiras de palhinha, na rua, a conversar. As conversas guardadas pelas estrelas e pela lua. Ficarão, pois, as novas. E as quase-novas. As que já não sabem amassar o pão azedo nem fritar torresmos. Que não dão conta da rugosidade das laranjas e da aspereza da cal. Que não enfiam as mãos na terra. Que não cortam os dedos nas ervas que crescem nos campos. Que já não pronunciam palavras antigas. Talego. Galheta. Alcagoita.
(O Outono é estação propícia às lembranças de quem nos faz falta. A minha avó, torcida, irascível, mentirosa, magoada, faz-me falta. )
Felicidade (1)
Soube da morte de uma vizinhas da minha avó. A Idalina. Melhor dizendo, a vizinha Idalina. Era assim que toda a gente a chamava. Vizinha é uma espécie de título. Assim como há por esse mundo fora condessas, duquesas, rainhas, viscondessas, marquesas, há nas aldeias vizinhas, tias e comadres. A vizinha Idalina morava mesmo em frente dos meus avós, numa casa com arcos, quase tão feia como a nossa, pintada de salmão, com um lambrim de azulejos acastanhados e brilhantes. Estava sempre por ali. Eu saia e dava de caras com ela, sorrindo-me do outro lado da rua. Masculina. Com o cabelo encaracolado. Vestindo batas coloridas. Regando os canteiros rectangulares onde cresciam dálias cor-de-vinho. Agora, quando voltar, ela já não estará lá. Não voltará a regar as dálias, nem as cristas de galo, nem as alegrias do lar. Não pegará na mão da minha filha e não a levará mais até ao fundo do quintal, perto das capoeiras, para lhe mostrar ovinhos de codorniz.
2006/10/25
Goa
Pátria Incerta, Inês Gonçalves e Vasco Pimentel
(Estranho, é muito estranho, olhar-se um lugar onde nunca se esteve e senti-lo como nosso. Só tenho pena de não ter conseguido arrastar o meu pai, o meu pai, católico e brâmane, para assistir ao documentário.)
2006/10/24
Pingo Doce (2)
Aborrece-me a anã. Tão pequena, impingindo a sua miséria, disfarçada de outra coisa qualquer, aos outros. Os outros olhando-a com surpresa e um certo nojo. Fitando-a, vasculhando bolsos à procura da esmola. Fujo-lhe. Volto a encontrá-la perto dos iogurtes e da padaria. Sempre interpelando alguém, vendendo rifas, escrevendo qualquer coisa nos papelinhos amarelos, recebendo moedas de um euro em troca. A Madalena alheia a tudo, sentada no carrinho, mexe numa árvore com cheiro de morango que será plantada no carro para disfarçar o cheiro dos chichis que a cadela insiste em fazer em cima da cadeira do João. Por fim, no corredor das cervejas, acontece o que temo. Sou abordada pela tenebrosa anã. Torta, tortinha, muito feia, sem dentes, mexendo-se com dificuldade, caminha na minha direcção, sorrindo-me. Olho-a, tentando perceber o que me diz. Os seus lábios movem-se, é certo. Um sorriso grotesco está colado ao seu rosto. Não a ouço. De repente o mundo emudece. Com calma, com muita calma, tiro a Madalena do carrinho, que vem cheio e pesado, e lanço-o na sua direcção. Ela, a anã, afunda-se no soalho encerado. Ninguém dá pela sua falta. Em sítio nenhum. Olho em redor. Nem um resquício ficou para a posteridade. Nem sequer um papelinho amarelo. Meto quatro garrafas de cerveja sem álcool no carrinho e respiro de alívio.
Pingo Doce (1)
Na peixaria, enquanto espero que a senhora de avental e da touca arranje as postas de safio, vislumbro um vulto pequeno que se aproxima do homem que está ao meu lado. É uma anã. Ou politicamente falando, uma pessoa de estatura pequena. Traz um bloco de folhinhas amarelas nas mãos anquilosadas. Escuto. “ ... e depois lembrei-me, em vez de pedir esmola, faço umas rifas e …”, ouço-a dizer com voz de falsete. Olho-a de viés. Toda a gente a olha de viés. O que nela incomoda não é a pequenez, nem sequer a feiura, que é muita. O que chateia, e surpreende, é o tom que põe na voz. Faz lembrar um fantoche ou o boneco de um ventríloquo. Tem a lengalenga decorada. Sou interrompida pela minha filha que, aborrecida, me pergunta porque é que levo safio em vez de dourada. Gosto mais de doirada, diz ela, que se deixa encantar por tudo o que brilha, até pelos nomes dos peixes.
2006/10/23
Molho de soja
Releio-me. Percebo que ando um bocado obcecada com esta merda. Credo. Já enjoa tantos álgidos lamentos. Vou passar outra tarde de náuseas, a arrotar a salmão cru e molho de soja. Que nojo.
Supérfluo
No quarto, cortei uma franja rala na testa. Saiu torta. Fiquei me examinando no fundo amarelado do espelho. E se casasse? Seria uma forma de me libertar, mas no lugar da avó, ficaria o marido. Teria então de me livrar dele. A não ser que o amasse. Mas era muito raro os dois combinarem em tudo, advertira a minha avó. Nesse em tudo estava o sexo. “Raríssimas mulheres sentem prazer, filha. O homem, sim. Então a mulher precisa fingir um pouco, o que não tem essa importância que parece. Temos que cumprir nossas tarefas, o resto é supérfluo. Se houver prazer, melhor, mas e se não houver? Ora, ninguém vai morrer por isso.”
O Espartilho, Lygia Fagundes Telles
(Havia de ter tido uma avó assim, que me explicasse, sem rodeios, o meu papel no casamento e na cama. Tinha evitado alguns dos pregos que tenho enterrados na carne. Isto de uma mulher achar-se no direito de ter prazer no casamento e na cama é uma tolice, uma modernice, uma palermice. Só traz chatices. Melhor abrir as pernas, arfar ligeiramente, receber o esperma conjugal, lavar os despojos, dar um beijinho de boa noite, virar para o lado, adormecer. Melhor viver no apartamento-prisão-labirinto, distribuindo sorrisos, fazendo sopas, lavando copos e pratos, estendendo cuecas, meias, lençóis, varrendo os cantos, sem nunca olhar para as grades que estão em toda a parte. Melhor ser uma deusa morta do que uma mulher viva.)
2006/10/20
Chungking Express
2006/10/19
Mulher-paquiderme
Ao lado da fêmea-tigre, que debica um pudim de ovos, um grupo de três mulheres fala do novo crucifixo do santo padre e das actividades da igreja. Conheço-as bem. São amigas da minha cunhada que acredita em deus com devoção e ganhará, por isso, um lugar no céu. Uma delas faz o bigode todos os dias e tem uma voz de trovão que assusta qualquer mortal. Outra é pequenina e está, hoje, especialmente esfuziante por a filha namorar com o filho de uma alta figura do Estado. A terceira chama-se Almerinda e é robusta como um paquiderme. Tem um ar campestre. Gosto muito dela e do marido, míope e excessivamente feio. Só que hoje a Almerinda traz sandálias que lhe deixam a descoberto os dedos dos pés. São uns pés gordos, inimagináveis de tão feios que são. Há uma certa obscenidade em mostrá-los. São pés pantagruélicos, gargântuescos. Tem uns dedos muito gordos, cheiinhos de carne. As unhas encaracolam, enterrando-se na carne. A unha do dedo pequenino, em vez de ser quase invisível, como é hábito, é gigantesca. Mostra-se, triangular, por cima de um bocado de carne. Olho para aqueles pés e esqueço as mamas da fêmea-tigre. Os pés da Almerinda, a mulher-paquiderme, arrumam com elas a um canto.
Fêmea-tigre
A fêmea-tigre chegou. Vem com o marido comprador de arte. Hoje usa uns calções de flanela grossa e branca. Muito curtos, com uns berloques dourados, que estão ali a fazer sei lá o quê. Como é costume tem uns saltos de dez centímetros. Desta vez imitam pele de leopardo e têm umas plumas pretas esvoaçantes. Usa uma camisa de seda verde, muito brilhante, com um decote obsceno. Tem as mamas à mostra. Literalmente. A única coisa que não se vê é o biquinho do mamilo. Não se vê, mas adivinha-se, pequenino, à espera de ser devidamente mordiscado pelo marido comprador de arte. Não consigo tirar os olhos daquelas mamas. Não que as mamas em si mesmo me interessem. A frigidez., a minha, já está num nível em que nada me estimula, o que é triste, sem ser angustiante, porque, em pequena, bastava-me olhar para a maya desnuda para empalidecer de êxtase. Agora é uma desgraça. O que me perturba é a exposição pública daquelas mamas numa festa de família. É anti-social. O meu filho está mesmo ali perto. E se o miúdo topa com aquele mamalhame acéfalo, mas magnifico? Pode ficar traumatizado e pensar que as mulheres são todas assim. Ainda bem que ele está a ver a bola.
2006/10/17
Expiação
Durmo mal. Acordo muitas vezes durante a noite. Às vezes como línguas de veado e quadradinhos de chocolate com avelãs inteiras que compro, muito baratos, no lidl. Espio os animais da casa. A cadela, os peixes, o rato russo, os bichinhos de conta que ela traz do jardim e que agonizam em tacinhas e caixinhas de fósforos. Outras vezes fumo. Gosto de fumar. Nunca vou aos quartos dos miúdos. Esqueço-me que lhes velar o sono mais tardio. Passo no corredor como um espectro. Acho que nem toco com os pés no chão. O meu corpo é evanescente, pouco denso. Sou capaz de atravessar paredes, voar através do tempo, falar com os mortos, dar risadinhas assustadoras. Sonho muito. Sempre sonhei. Sou feita de imagens sonhadas: árvores de folhas prateadas, jardins coloniais plantados no cimo da António Augusto de Aguiar, um leão passeando, calmo, pelo Parque Eduardo Sétimo, a Baixa labiríntica, um homem chinês, pequeno como eu, sorrindo ao abrir a porta. Antes de adormecer a mesma imagem toma conta da noite. São dois pulsos cortadas. Um corte ligeiro em cada um deles. Uma lágrima de sangue escorre lentamente e ensopa um tapete felpudo cor de café com leite. Não é uma imagem terrível ou angustiante. Não me assusta nem me preocupa. É uma imagem como outra qualquer. Faz lembrar as chagas de um cristo padecente, mas sereno.
2006/10/16
Unhas de porco
Passei por um talho onde, numa cartolina amarela, se anunciava a venda de unhas de porco a 0,48 €. Fiquei maravilhada a olhar para aquilo. Fascinam-me as coisas pequeninas que se podem comer de um animal: unhas, pezinhos, bofe, rins, coração, orelha, focinho, testículos. Nesse preciso instante fez-se luz na minha cabeça e percebi que o meu sonho, afinal, tem uma leitura política. Já sei quem é que mandou o telegrama ao Paulo Portas. Só não percebo porque vem escrito em espanhol. Deve ser para disfarçar.
Volta, mi amor
Vivo numa espécie de residência universitária, cheia de gente. É uma casa de vários andares, escura e desarrumada. De repente tocam à campainha. Alguém abre a porta. É o correio. Trazem um telegrama. Vindos do andar de cima, descendo uma escada em caracol, apressados, chegam dois homens. Ambos estão nus e descalços. Apenas usam uns slips brancos. O primeiro é o Paulo Portas que corre para a porta. O segundo é o Nobre Guedes e traz um ar circunspecto. O Paulo Portas apanha o telegrama e, sofregamente, lê em voz alta. “Volta, mi amor”. Emocionado, vira-se para o Nobre Guedes e diz-lhe “Ele quer que eu volte”. O outro não lhe responde. Voltam a subir as escadas em caracol. Devem ir falar das suas vidas. O amor é uma coisa complicada. Pode-se amar muita gente, ao mesmo tempo, de maneiras diferentes. Entretanto, saio com a directora da residência que me levará à cidade. É a Maria João Avilez. Guia um Nissan Micra preto, veste um vison branco e tem um ar pouco simpático. (Andam baralhados, os meus sonhos. Deste não tiro nada.)
2006/10/13
Corpo e alma
A Rita Ferro Rodrigues, na sua coluna do Expresso, falou deste meu blog há umas semanas atrás. Achei despropositada a comparação com o meu pipi e exagerada a alusão à minha frigidez angustiante. A minha frigidez não é angustiante, é apenas inconveniente, assim como uma visita que não se espera e se alonga em conversas aborrecidas. Porém, confesso, gostei de ler o que escreveu sobre as minhas as miudezas. No fundo, bem lá no fundo, foram os meus quinze minutos de glória. Quando soube corri a telefonar à mana. Mais ninguém. Hoje, no quiosque da D. Bia, ao comprar o jornal, percebi que a Rita é a capa da Caras desta semana. Ao que parece está feliz ao lado do seu novo namorado. Se fosse antes do elogio eu tê-la-ia insultado mentalmente. É óbvio. É que lhe tenho embirração antiga, o que não é muito grave porque eu desdenho quase toda a gente. Apraz-me vê-la, contrariada, apresentar o programa da manhã, ao lado da Fátima Lopes e do careca que tem um defeito na fala. Fico deliciada quando a vejo falar com o Cláudio Ramos e a Maya, ambos cagalhões antropomórficos (em rigor, não chegam a ser cagalhões porque até os cagalhões têm alguma dignidade), sobre os outros cagalhões que se passeiam nos folhetins cor-de-rosa. Acontece que a minha fonte de insultos, sempre torrencial e inesgotável, para meu próprio espanto, secou naquele preciso momento. Não a consegui insultar. Olhei para a tal revista e achei a Rita bonita e radiosa. Culpei os malandros dos fotógrafos que não a deixam em paz. Estive quase tentada a comprar a Caras para me compadecer com os seus desgostos de amor. Enfim… A verdade é que uma pessoa vende, corpo e alma, por meia dúzia de palavras agradáveis. É uma desgraça.
2006/10/12
Realeza
A minha filha amuou porque descobriu que em Espanha há um rei e uma rainha. Agora quer ser espanhola (sempre disse que esta miúda era esperta). Sem acreditar muito no que dizia, expliquei-lhe que era melhor ter um presidente escolhido por nós. Esteve-se nas tintas para a liberdade e para o direito de voto. Inchei de orgulho. O que é isso comparado com um rei coberto por um manto de arminho e uma coroa cravejada de pedras preciosas acompanhado por uma rainha de vestido comprido, bordado a fio de ouro, com o cabelo entrançado com pérolas?
2006/10/11
As maminhas da Raimunda
Na sua crónica semanal sobre cinema, o Paulo Portas fala do último filme do Almodovar. Às tantas, já nem sei a que propósito, descreve um dos planos mais marcantes do filme. Raimunda, depois de um dia de cansaço, lava a loiça ou cozinha (já não sei) no seu pequeno apartamento de arrabalde longínquo. O plano, meia dúzia de segundos, é filmado de cima. O cineasta dá-nos uma visão do mundo que nunca temos. É o olhar de deus. Só deus lá de cima nos vê assim. O Paulo Portas remata o seu parágrafo qualificando as mamas da Penélope Cruz, que se mostram magnificas num decote generoso, como “maminhas peninsulares”. Nem mais. Ora, o plano em questão está cheio de um erotismo doméstico, intenso, que dificilmente se encontra no dia-a-dia. Ali está um peito, encoberto, que treme, que se imagina com o cheiro de um dia de trabalho recozido na pele. É um plano sensual para um homem que o observe. Mas também é muito sensual para uma mulher. Só um homossexual conservador e reprimido, que branqueia a dentadura e usa patilhas à marialva, totalmente imune ao que uma mulher tem de mais bonito, as mamas, poderia descrever, de forma tão frouxa e tíbia, as da Penélope Cruz.
2006/10/10
Cesariny (2)
Foi então que reparei no quadro. Um Cesariny, enorme e amarelo. O marido da prima, perante o meu interesse no quadro, perguntou-me se gostava. Antes que pudesse dizer-lhe que não explicou-me que a compra daquele quadro tinha sido um belo investimento. Esperava que o mesmo valorizasse assim que o pintor morresse. Olhei para o quadro preso naquela triste realidade. Lembrei-me da entrevista lida pela manhã, o Cesariny tão velho e saudavelmente louco, a falar dos urinóis de Lisboa, dos homens que amou e dos outros com quem se deitou, a falar, com desassombro, da vida e do pode haver dentro dela. Lembrei-me de tudo isto e calei o chorrilho de disparates que esteve prestes a sair-me da boca. A tua mulher é boazona, mas burra que nem um calhau e tu és um prostituto, um chulo, um badameco armado aos cucos, um cobridor de fêmea que se veste de tigre e usa unhas de gel. Havia ela de ser de Camarate, da Brandoa ou da Cova da Piedade, tesa e retesa, a ver se te casavas com ela. Era o casavas. Quando ele se calou fugi para a cozinha. Fumei vários cigarros de seguida. E deixei-me ficar a falar com a ucraniana de olhos glaciares.
Cesariny (1)
Para cumprir uma obrigação familiar, um destes dias fui a um jantar de aniversário de uma prima por afinidade que vive no meio da cidade, num apartamento de luxo. A aniversariante, que tem umas mamas grandes e uma peida apetecível (é o que dizem, que eu de peidas percebo pouco), usava uns sapatos de verniz pretos, com saltos muito altos, e uma camisa de seda a imitar pele de tigre. É simpática, a prima. Aliás, é uma daquelas pessoas em quem a gente pensa e diz fulana é simpática e não lhe ocorre mais nada. Mas sabe fazer-se de senhora crescida. Sabe dar ordens à empregada, uma ucraniana, de pele muito clara e olhos frios. Sabe servir entradas, pratos cheios de gambas, nozes, lagosta, sobremesas requintadas, estrangeiras, naturalmente, que o que é nacional é mau, comezinho, deve evitar-se a todo o custo. No final, agradeceu a prima aos convidados com uma taça champanhe francês, aquele conhecido, Moet et Chandon ou lá como é que é. Fez um discurso emocionado. Bati palmas. Os amigos da prima também. Eles de camisa azul e calças de sarja creme vincadas, elas de vestido de alças, sandálias de cunha, beberricando champanhe e sacudindo madeixas loiras, afectadas, falando nasaladamente, metendo ditongos em palavras que os não têm.
2006/10/09
Tóquio
Estive a pensar. Outra prova irrefutável da menoridade dos homens é o facto de gostarem dos Led Zpelin. Todos os homens gostam dos Led Zplin. A última vez que fui ao Tóquio, há muito tempo, o Manuel, que até tenho em boa consideração, dançou entusiasticamente um solo de guitarra da dita banda que durou para aí dez minutos. Nem queria acreditar. Não conheço uma única mulher que goste dos Led Zpelin. Uma única. Prova evidente da superioridade vaginal.
2006/10/06
Encarnação
Casas altas, estreitas, geminadas, pintadas de cor, amarelo canário, amarelo torrado, grená, verde água, azul petróleo, cor-de-laranja, uma das casas tem uma varanda cheia de lixo, entre o amontoado de coisas vejo um guarda sol de ramagens largas, desbotado, as granjinhas já amarelecidas e o cabo e as varetas sarapintados de manchas de ferrugem. Lá em baixo um rio nevoento corre, agitado, águas turvas, geladas, roçagam o musgo das margens, por cima do rio, a atravessá-lo, uma ponte romana, alta, muito alta, de pedras esboroadas pelo tempo. Eu a olhar para as casas e para o rio, a achá-lo tão bonito, na sua imensa escuridão, a perceber, pela estranha quietude que por ali paira, que estou completamente só.
(Os sonhos, os que fazem as minhas noites, adormecem dentro de mim. Também nunca me abandonam. Entopem-me as veias.)
(Os sonhos, os que fazem as minhas noites, adormecem dentro de mim. Também nunca me abandonam. Entopem-me as veias.)
Amiga
Li, algures, que, em 20% dos casos, a depressão se torna numa doença crónica sem remissão. Ao contrário do que o doutor LM diz, a minha depressão não é reactiva. Engana-se redondamente o doutor LM que fuma charuto e está sempre excessivamente bronzeado. A minha depressão é crónica. A tristeza em mim é um estado latente. Conheço-a desde sempre. Cresceu comigo. É uma espécie de minha melhor amiga. Cuja presença me incomoda. Que se impõe nos meus dias. De vez em quando, a amiga-tristeza hiberna dentro do meu corpo durante longos períodos. Acomoda-se num canto qualquer e deixa-se adormecer, enroscada. Oiço-lhe o ressonar, brando e húmido, de animal manso. Não me incomoda, mas sei que está lá. Nesses momentos quase me sinto normal (seja lá o que isso for, não me quero normal, nunca quis, sou demasiado maníaca, megalómana, para me satisfazer com a normalidade, associo a normalidade à mediania e eu, de longe, prefiro ser medíocre a ser mediana). Outras vezes, a amiga-tristeza desperta e, como um animal acicatado, transforma-se em fúria, ira e dor. É uma dor invisível, de tal forma intensa que se sobrepõe a tudo e a todos. Como se mata uma amiga, a melhor, que vive dentro de nós? A resposta é fácil, aceitável até. Basta que se retire a carga dramática, trôpega de lamentos, urros aflitos e brados lacrimosos.
2006/10/04
2006/10/03
Alma
Aconteceu o que temia há muito. Fiquei com o salto preso na calçada. Corri, coxeando, ao sapateiro. “Só lhos posso entregar amanhã. É que a menina partiu a alma do sapato!”, disse ele, arregalando-me os olhos. Encolhi-me. Envergonhei-me. Coisa feia de se partir. A alma. Não se parte o coração nem a alma a ninguém. Muito menos a uns sapatos pretos clássicos, nossos amigos, tão disponíveis, que ficam bem com qualquer trapo.
2006/10/02
Frio
Está frio. Tirito. Apetece-me comer marmelos cozidos com pau de canela. A tia Dé, que tem a solidão aberta nos olhos e nos dedos, fá-los bem. Se um dia me morre a tia, a mãe ou o pai morro também. Mato-me que não me quero por cá sem progenitores. Sou mais filha que mãe. Quero ser outra vez menina para ver as trovoadas da janela da cozinha da minha avó. O nariz pingão esborrachado no vidro. A imaginar deus como um mago gigante, fero, vestido de cetim recamado de estrelas e cometas, a lançar feitiços cá para baixo. Agora sou crescida. Sou uma mulher crescida e gelada. Vou para casa enrolar-me em folhas de papel de jornal. Depois acendo um fósforo. Pode ser que aqueça.
Espelho mágico
“Quero trocar de corpo”, digo à imagem que o espelho reflecte. “Este não me serve. Está morto. Estou farta de velar o meu clítoris e a minha vagina." A imagem olha-me enquanto repito gestos matinais. Lavar o rosto. Esfregar os dentes. Espalhar o creme hidratante. Depois a base compacta que esconde poros, borbulhas, imperfeições, manchas. Volto a olhar a imagem do espelho. Tem os olhos rasos de água. Coitada. Um mar de escuridão dentro deles. Estende os braços. Parece querer abraçar-me. Borrifo-me de lavanda. Fujo-lhe. Apago a luz. Era o que mais faltava. Detesto cenas de comiseração logo pela manhã.
2006/09/29
Verdes Anos
No correnteza do comboio há figueiras de folhas largas e puras, nelas não se enforcou Judas, nem ninguém, há retalhos de terra cansada onde velhos plantam couves galegas e outras coisas, cenouras, batatas, nabos, espinafres, há colmeias na chapada do monte, mesmo por baixo de uma bomba de gasolina, há pergólas endemoninhadas feitas por ervas bravias, heras, ortigas, trepadeiras com campânulas em flor, há prédios de papelão onde vivem pessoas de papelão, vejo agora, ali, um homem de papelão espreguiçando-se numa janela e um braço de mulher que nele se enlaça como se fosse uma serpente sibilante. Adão e Eva. Há ruínas habitadas pelo silêncio e o vento. Lá em baixo, Ilda e Júlio tropeçam nos regatos que são animais mansos. As suas gargalhadas sobem pelo ar como se fossem bolas de sabão. Translúcidas, efémeras, com todas as cores lá dentro, a morte também lá está, disfarçada de vida. Entram as gargalhadas com corpo de bola de sabão pelas janelas do comboio. Por breves instantes ficam rendilhadas. Tornam-se em quase nada. Depois rebentam no meu nariz e nas minhas mãos. Plof.
2006/09/28
Amália (2)
Sempre ouvi dizer que sou parecida com a tia Amália. Fisicamente, mas não só. Desconfio que o génio também deve ser parecido. Quando se zanga com o marido, a tia Amália pega na pequena acelera de fabrico indiano, uma máquina potentíssima, percorre o caminho de Pondá a Maina, praguejando sempre contra o pobre Xavier, e vai descansar uns dias à casa materna, entre papaieiras e cajueiros. Só volta quando o marido mete o rabinho entre as pernas e lhe pede para voltar. Quero conhecê-la. Mergulhar-lhe nos olhos, nos silêncios e nos gestos. Quero que me ensine a usar um sari, a pintar os olhos com côle, a apanhar devidamente o cabelo (uma mulher deve ter o cabelo comprido, mas usá-lo sempre preso, é o que o meu pai diz). Quero pisar a terra vermelha dos caminhos da aldeia que viu crescer os cinco irmãos. Amália, Manuel Maria, Inácio Caetano, Rosário, Rosu, a mais velha, muito velha, sem idade, bruxa, feiticeira, louca, que fuma charutos, encolhida numa enxerga suja, a poalha da cinza a cair em cima do sari branco. Diz a minha mãe que, quando a tia Amália me olha nas fotografias, ao reparar nos olhos escuros, no cabelo preto e comprido, na pele, me acha mais indiana do que europeia. Serei? Apesar de nunca a ter conhecido, de nunca lhe ter ouvido a voz ou sentido o cheiro, de nunca a ter abraçado, sinto esta tia, que é uma ausência que não se quer, como minha.
Amália (1)
Chama-se Amália. Conta o meu pai que, quando eram pequeninos, a levava na bicicleta para a escola, percorrendo vários quilómetros de caminhos enlameados e tortuosos, debaixo das chuvas monótonas das monções. Quando cresceu, a tia Amália tornou-se professora e, como todas as outras raparigas goesas, casou com o homem que os seus pais, meus avós, escolheram para si. Xavier, um funcionário de uma fábrica qualquer, a quem acabou por amar. O meu pai, pouco dado a elogiar os seus, tem uma admiração grande por esta irmã. Apesar de pertencer a uma família brâmane, a tia Amália casou a filha com um rapaz de outra casta qualquer. Marimbou-se nas ancestrais tradições e ficou contente por a filha, médica, casar com um engenheiro trabalhador que a levou para a Arábia Saudita, onde ganham rios de dinheiro e são felizes. Esta atitude não é comum na comunidade católica goesa, muito apegada aos valores tradicionais. Quando o meu tio Rosário casou com uma mulher de uma casta inferior, a minha avó, para o castigar, mandou construir-lhe uma casa na periferia da aldeia, longe de si e do resto da família e, para sempre, o tratou como um pária. Morreu de cirrose, carcomido pelo álcool e pelo desprezo familiar. O meu pai só levou a minha mãe a Goa depois da avó Aninhas morrer. Parece que ela apanhou uma fúria grande por ele, preterindo a noiva goesa por ela escolhida (feiíssima, segundo consta), ter casado com uma portuguesa. Coitadinha da minha avó. Ficou a ganhar o meu pai que casou com a mulher mais bonita do mundo. Ainda hoje me custa a perceber como conseguiu o meu pai seduzir a minha mãe.
2006/09/27
Espelho mágico
“Cabra infeliz e feia!” rosnei, pela manhã, à imagem que o espelho me mostrava. A imagem quedou-se por breves instantes, olhando-me. Depois, puxou a mão atrás e deu-me um valente estalo.
2006/09/26
Índia
Steve Mccurry
(O meu pai não usa turbantes amarelos. Não encanta serpentes com flautas mágicas. Não fuma cachimbos perfumados. Não tem uma expressão grave nos bigodes retorcidos. Não teme Shiva. Nunca se banhou nas águas terrosas do Ganges. Mas é assim, junto dele, sentido-lhe o calor e a indiferença, que adormeço.)
2006/09/25
Catitas e felizes (2)
Acontece que a bibliófila em questão falava, no seu blog, de um livro que li há pouco tempo. Ainda está em cima da mesa-de-cabeceira e vou ter dificuldade em devolvê-lo ao seu legítimo proprietário. Quem me conhece sabe que leio compulsiva. Por prazer. Por isso, me enervou a conversa da bibliófila. Eu amo os livros (assumo, neste caso, a parolice do emprego do verbo amar). Tenho por eles um amor táctil como diz a canção do Caetano Veloso. Mas também os odeio e desprezo e pretiro. Os livros são capazes de me pôr doente, triste, angustiada, irritada. Outras vezes, feliz. Porém, apesar da importância que têm na minha vida, jamais me passaria pela cabeça chamar-me, considerar-me bibliófila. Quem se assume como bibliófila como se assumisse um título ou uma comenda é tonto, palerma, acéfalo. É conversa de quem não percebe nada de livros. Um livro é mais do que um objecto que se lê e comenta. Os livros não servem para ser escalpelizados em teorias e críticas (essa tarefa compete apenas aos académicos, coitados, que se entopem em recensões, análises, comparações). Muito menos servem os livros para a gente se pavonear, em alaridos despropositados, com meia dúzia de linhas mal escritas na blogosfera. O que a tal bibliófila não sabe, nem percebe, é que, quando um livro nos toca, não se compartilha sequer.
Catitas e felizes (1)
Raramente leio blogs. Aborrece-me a democraticidade da coisa. Todos opinam, todos escrevem, todos se metem numa espécie de montra, assim como as putas de Amsterdão, mostrando qualidades, erudições, trocando galhardetes, elogios, lincando histericamente, furiosamente, espampanantemente, mostrando vidas preenchidas, interessantes, divertidas, viajadas, cosmopolitas. Uma pontinha de irreverência aqui. Outra pontinha de irreverência ali. Já está. Está feito. Como somos catitas e felizes! Como sou amarga. Sempre que caio na asneira de passear pela blogosfera enervo-me. E eu não posso enervar-me porque, como diz a minha empregada, sou uma pessoa fraca dos nervos. Noutro dia, já nem sei por que caminhos lá fui dar, topei com uma tipa que se assumia como bibliófila (aquele que ama livros). Franzi de imediato as sobrancelhas e lembrei-me duma colega que alardeava aos quatro ventos o seu amor aos livros e de como um dia queria adoptar um pretinho. Era assim mesmo que ela dizia, um pretinho, um estafermo de um pretinho, um pretinho do Biafra, com uma barriguinha de fome, um pretinho, um pretinho, um pretinho, coitadinhos do pretinhos. Coitadinha era da amiguinha, senhora doutora, meretíssima e tal, com uma beca pregueada, feita numa costureira da Amadora, que tinha a boca cheia de dentes amarelos e dizia “drógado” e “vou fazer o comer”. Adiante.
2006/09/22
Julieta dos Espíritos
Em vez de Rosita, ficou a chamar-se Julieta dos Espíritos. Tive que inventar uma mentira muito grande para os miúdos aceitarem. Queriam chamar-lhe Carocha. Eu sou lá mulher para ter uma cadela chamada Carocha... Ainda por cima ela é parecida com a Giulietta Masina. Pequenina. Bonitinha. Com dois olhos muito vivos. Lindinha.
2006/09/21
Baile no Bosque
Alguém diz com lentidão:
"Lisboa, sabes..."Eu sei.
É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,
algumas rugas finas
a espreitar-lhe os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.
Eugénio de Andrade
(gosto tanto dos Trovante.)
"Lisboa, sabes..."Eu sei.
É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,
algumas rugas finas
a espreitar-lhe os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.
Eugénio de Andrade
(gosto tanto dos Trovante.)
2006/09/20
Cipralex (3)
Meti-me num táxi e rumei à primeira farmácia de serviço que encontrei. O mundo continuava a girar à minha volta, tremelicando por todos os lados, bruxuleando como a luz de um pedaço de vela. E as formigas malditas, essas não me largavam os lábios. Uma sensação, grande, de desconforto e insegurança tomava pois conta de mim. Para minha irritação, quando entrei tinha duas mulheres à minha frente. Sentei-me. A primeira pediu trifene. Bufei. Resfoleguei como os búfalos que conheceram o meu pai pequenino, lá longe, nos prados de Goa. Uma dor menstrual tem lá comparação com a ressaca provocada pela falta prolongada de um anti-depressivo? Já tive dores menstruais. Até já tive filhos sem anestesia. Não custa nada. É uma dor física que o corpo aguenta. A segunda mulher pediu palmilhas de silicone anti derrapantes para os sapatos. Aí não aguentei e reclamei que aquilo era uma farmácia de serviço, não uma para-farmácia. A farmacêutica, do outro lado do balcão, insolente, disse-me para esperar. Tive saudades, tantas, da empregada do senhor doutor, a tal Cristina, tão simpática, tão subserviente, tão senhora doutora para ali, senhora doutora para acolá. Encolhi-me. A empregada demorou imenso tempo a mostrar palmilhas de silicone à velha que estava à minha frente. Eu a morrer devagarinho. Por fim, lá se dignou a atender-me. Quando viu a minha receita, olhou-me em silêncio. Eu olhei-a de volta, prestes a desfalecer. Mal saí da farmácia meti um cipralex à boca. Passados poucos minutos o mundo parou de tremer.
Cipralex (2)
Estava eu a observar as ondulações da avenida quando entrou um homem que conheço vagamente. Trabalha num ministério qualquer. É advogado. Ou jurista. Ou coisa que o valha. Ele bem tentou esquivar-se, mas não teve como me fugir. Deu-me dois beijinhos e, claro está, passados dois ou três minutos, estava a justificar a sua presença na sala de espera de um psiquiatra. Eu ouvi e nada lhe disse. Bico calado. Era o que mais faltava explicar-lhe a minha triste depressão, a minha confrangedora frigidez, as minhas ideias suicidas, as minhas inseguranças e efabulações flatulentas. Deixei-o falar. Até porque o dito colega é uma daquelas pessoas, narcísicas, que gosta de se ouvir a si próprio. Só me aborreci quando começou a falar de trabalho e, em tom displicente, criticou determinadas orientações tomadas pela direcção do instituto público onde trabalho. Tenho a impressão de que gritei porque uma mulher gorda de olhar bovino deixou de fixar o ecran de televisão, onde a Floribella sorria imbecilmente, e me olhou de viés como quem diz “coitadita!”. Por fim, a empregada chamada Cristina, solícita, desfazendo-se em desculpas pelo atraso, chamou-me. Salvou-me daquele inferno. Entrei na consulta. Depois de meia dúzia de insignificâncias, muitos sorrisos, frases curtas, sai de lá com a abençoada receita.
2006/09/19
Cipralex (1)
O cipralex acabou-se antes do esperado. Eu deixei andar. Dois ou três dias sem tomar o dito medicamento não faz mal a ninguém. Foi o que eu pensei. Sucede que ao terceiro dia sem cipralex comecei a sentir tonturas e náuseas. Leves, levezinhas, como um manto de gaze diáfano pairando sobre mim. Ao quarto dia, para além das tonturas e das náuseas, já evidentes, comecei a sentir tremores, tremeliques e um formigueiro que se iniciava nos dedos dos pés e, coisa estranha, estranhíssima, me saía pela boca. De imediato percebi o que se passava. Era o meu corpo que se ressentia da falta do medicamento. Telefonei, de imediato, para o consultório. A empregada, que julgo chamar-se Cristina, alarmou-se. “Ó doutora, não pode estar tantos dias sem tomar a sua medicação!”, disse ela. Nota: estou-me nas tintas para o meu quase inexistente grau académico, qualquer gato-pingado da Brandoa tem uma licenciatura em direito. Porém, confesso que, nos consultórios médicos, gosto que me tratem por doutora. Sabe-me bem a deferência. Adiante. A Cristina, empregada do senhor doutor, lá fez das tripas coração e por fim, conseguiu marcar-me uma consulta para esse mesmo dia. Fui. Esperei que tempos. Espreitei a avenida, lá fora, tão desinteressante. As pessoas muito certinhas, endinheiradas, assépticas, sem pecados, nem máculas, a sair, em magotes, dos escritórios, dos bancos, das lojas, rumando aos arrabaldes chiques da cidade ou às suas casas do centro com tectos de estuque recuperados e peças de design muito caras compradas nas lojas do bairro alto e do príncipe real.
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